Colunas

25 de março no Ceará: entre esquecimentos

O Ceará foi a primeira província a abolir a escravidão no Brasil, fazendo-o em 25 de março de 1884, quatro anos antes do restante do país. Mais de um ano antes, em janeiro de 1883, todos os 116 escravizados da vila do Acarape (hoje Redenção) foram alforriados, mediante o esforço de alguns personagens dos movimentos abolicionistas da época. Em 2020, completaram-se 136 anos da libertação de negros escravizados em território cearense.

Logo após a abolição, construiu-se a imagem do Ceará como “Terra da Luz” pelo pseudo pioneirismo na desestruturação do sistema escravista  –  tomando para o Estado a centralidade na abolição  –  e se elegeu um herói, o Dragão do Mar, para tomar o crédito por ter tornado possível que a escravidão acabasse, individualizando uma luta que, na realidade, foi coletiva, e delegando outros nomes importantes ao esquecimento.

Mesmo essas memórias, porém, parecem ter perdido força com o tempo e hoje não é muito comum encontrar quem tenha conhecimento delas fora dos meios acadêmicos ou dos espaços de engajamento político, especialmente nos movimentos negros.

Entretanto, mais de um século depois, a memória quase esquecida sobre a abolição na província do Ceará parece ter ganhado um novo suporte: instituída por lei em 6 de dezembro de 2011, a chamada Data Magna do Ceará celebra a abolição do regime escravagista no Ceará. Diante disso, podemos colocar duas questões: o que significa estabelecer um feriado sem que se discuta amplamente o seu sentido? O que é que se deseja lembrar ou, mais importante, como se deseja lembrar daquilo que se lembra?

O próprio estabelecimento da data, 127 anos depois do fato que ela celebra, parece ter muito a ver com a história de silêncios e apagamento da memória de luta negra no estado. Definir uma data como “o Dia da Abolição”, embora tenha sua importância, implica em uma memória que reduz muito rapidamente, e de forma muito simples, um processo longo e doloroso a um dia no calendário.

Nesse caso, fazendo parecer que, de repente e graças ao Estado e a um sujeito, a escravidão — em todos os seus desdobramentos econômicos e culturais, estruturantes de toda uma sociedade — conheceu o seu fim, desconsiderando toda a luta necessária para que o dito dia chegasse. Acontece que eventos como esse, para a História, não são uma efeméride, nem tem como ser fruto da luta de um homem só.

Por um lado, os negros enviados à força para o Brasil para serem escravizados já resistiam antes mesmo de serem jogados dentro dos navios. Foram séculos de resistência negra ao regime de escravidão e a diversas outras mazelas causadas pelo homem branco europeu. A essas resistências, somaram-se movimentos abolicionistas organizados, interesses econômicos, conjuntura política e até fatores climáticos que tornaram possível a abolição tardiamente precoce no estado do Ceará.

Por outro lado, o protagonismo quase solitário do Chico da Matilde (o Dragão do Mar) na memória abolicionista do Ceará, embora importante, tanto põe de lado figuras igualmente ou talvez mais importantes na articulação da resistência e da luta abolicionista, como a preta Tia Simoa, como joga para segundo plano todas as outras formas de resistência praticadas em todo o território nacional há muito mais tempo, algumas com lideranças e organização bem definidas.

Desse modo, quando pensamos o processo de abolição da escravidão no Ceará, a discussão deve ser mais ampla e profunda, deve ir além da Terra da Luz, do Dragão do Mar ou desse quadro, que está exposto no Museu do Ceará, onde está pintado um salão lotado de homens brancos assistindo a assinatura da lei que libertaria os escravizados da província do Ceará.

“Fortaleza Liberta”, de José Irineu de Souza (1883), integra o acervo do Museu do Ceará. Conta-se que algumas pessoas presentes na pintura sequer participaram da reunião representada, mas pagaram para estar no quadro, pelo status social que a participação no abolicionismo acarretava. Foto: Reprodução.

Um feriado que se propõe a celebrar algo memorável não faz sentido se, junto a ele, não há mobilização de debate; se nas escolas a narrativa ainda contempla uma versão reduzida da memória abolicionista (isso quando contempla). Um feriado desse porte continuará carente de sentido enquanto não houver esforços para que a sociedade como um todo compreenda que mais importante que lembrar da abolição, é lembrar da luta necessária para que isso fosse possível.

Existe um francês que disse uma vez que a gente hoje não tem mais memória, que a memória espontânea deixou de existir, que ninguém se lembra mais das coisas como deveria. Segundo ele, é justamente por causa dessa amnésia generalizada que a gente precisa criar meios de memória para nos lembrar das coisas e colocá-las em discussão diante da sociedade. Os feriados são exemplos desses meios de memória; e o dia 25 de março no Ceará me parece ser um exemplo categórico da afirmativa feita por esse francês em 1984: o dia da abolição no Ceará tenta celebrar uma memória que, há muito, já caiu no esquecimento.

Foto de capa: Pexels.

LEIA TAMBÉM: O negrume do maracatu cearense: um grito visual de negritude

Compartilhe: