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A Soma de Todos Nós: quanto custa o racismo a todos e como podemos prosperar juntos

Nos Estados Unidos da América, a disparidade econômica entre homens brancos e mulheres Negras afro-americanas é abismal e irrefutável. De acordo com o relatório do Instituto Econômico McKinsey, a média de capital acumulado de uma mulher negra solteira é de US$ 200 (duzentos dólares) em patrimônio, em comparação a US$ 28.900 (vinte oito mil e novecentos dólares) em patrimônio para um homem branco.

Como justificativa para esse abismo, poderíamos destacar as heranças escravocratas do país, a meritocracia ou até mesmo o nível de educação acadêmica alcançado por cada um dos grupos. Honestamente, gostaria de não reduzir a complexidade do tema a uma simples justificativa econômica ou a chamada meritocracia.

É notório que, ao aumentar a riqueza da população negra, os EUA poderiam aumentar sua economia quase que instantaneamente. Apesar desse fato, a maioria dos brancos luta com ferocidade contra todas as iniciativas governamentais que visam a diminuição da desigualdade. Mas por quê?

Assim como o estudo citado acima, existem tantos outros que apontam que uma economia diversificada ( com a inclusão em massa de negros) aumentaria a produtividade dos Estados Unidos em trilhões de dólares por ano, por exemplo. A perda de receita por causa do racismo custa, também, milhares de vidas. O que se perde como sociedade em resultado da segregação é, de fato, incomensurável. 

The Sum of Us

Acabo de ler o livro The Sum of Us, algo como “A Soma de Todos Nós”, em tradução livre para o português. Escrito pela comentarista política e estrategista americana Heather McGhee e ainda sem data para lançamento no Brasil, o livro é uma tentativa de levar a razão à maioria dos brancos nos Estados Unidos da América.

Somos seres altamente articulados, no entanto, como animais, muitas de nossas decisões são impulsionadas por instintos, ao invés da razão. Este texto não tem o intuito de somente apontar o dedo para os brancos, até porque o conceito de raça é definido através de uma construção social. O problema não é ontologicamente branco, eu diria, no entanto, que ele é epistemicamente branco. 

O racismo é um comportamento aprendido e, como qualquer outro hábito, com vontade, bastante esforço e um ambiente propício, pode ser alterado. Sou pai de crianças pequenas, e uma das coisas que frequentemente repito para elas é que: não existem pessoas más ou boas. Todos nós somos capazes de realizar as melhores e as piores coisas que imaginamos que outros possam fazer.

Para explicitar que meu objetivo não é de culpar toda uma raça, aconselho-os a ler trabalhos de escritores brancos que fizeram e fazem um trabalho incrível de conscientização sobre as desigualdades raciais no mundo, como Joseph Stiglitz, Guy Standing, Rebecca Cokley e Thomas Piketty que, incansavelmente, apontam soluções para melhores leis e políticas de inclusão.

Morrer de branquitude

Os homens brancos são o maior grupo de pessoas auto intituladas conservadoras nos EUA. O partido conservador, os Republicanos, são geralmente a favor da liberação do uso de armas no dia a dia. No entanto, de acordo com Jonathan Metzl, as maiores vítimas da violência a mão armada nos Estados Unidos da América são precisamente homens brancos. 

O medico e escritor Jonathan Metzl e seu livro “Dying of Whiteness” ou “Morrendo de Branquitude”. Foto: Divulgação.

No Tennessee, estado com alto número proporcional de afro-americanos (16,34%, em comparação a 13% em todo o país) e uma grande população de classe trabalhadora branca, constantemente perde milhares de cidadãos brancos, pois a maioria não pode pagar por seguro saúde. No entanto, legisladores Republicanos do Tennessee votaram e ainda votam consistentemente contra o Affordable Care Act (ACA), algo como “Lei de atendimento médico financeiramente acessível”, conhecido também como Obamacare.

Muito do que é discutido no livro de Heather são fatos de pessoas brancas agindo de maneira que prejudicam a elas mesmas. Atirando em seus próprios pés, eu diria. Outro exemplo, mostrado no livro, é de como o racismo aumenta a probabilidade de alguém se opor à ação climática. Ele garante poder a poucos e faz com que todos soframos, gerando também prejuízos para gerações futuras e para todo o planeta. Como diz Heather: “No final das contas, todos nós estamos pagando pelos conflitos morais dos americanos brancos”.

Mas por que os brancos (ou qualquer outro grupo) escolheriam morrer em vez de compartilhar recursos? Essa é a pergunta que a autora tenta responder.

No período colonial, nos EUA, a aristocracia escravocrata, observando o surgimento das rebeliões e a solidariedade entre brancos pobres e negros escravizados, decidiu, em um pacto, libertar todos os brancos para que aqueles brancos pobres acreditassem que tinham um interesse na defesa da supremacia branca. Até hoje, pesquisas indicam que os brancos veem o racismo como um jogo de soma zero. Um tudo ou nada no qual muitos brancos acham que estão em desvantagem. A resistencia à nossas reivindicaçoes que são constantemente chamadas de “mimimi”, ou o arguemnto contra leis de proteção que brancos insistem em chamar ironicamente de “politicamente correto”, são exemplos disso. Brancos no Brasil e no mundo fazem de tudo para manter seus privilégios. Nessa batalha, lutam a qulquer custo (mesmo que , em alguns casos, custe a propria vida).

Quando um membro da sociedade avança, avançamos juntos

A luta pelos direitos civis americanos, enfrentada principalmente por afro-americanos, resultou na lei dos direitos civis na década de 1960. Anos depois, a assinatura do Ato dos Americanos com Deficiência (ADA) foi um grande passo na redução das desigualdades para os cidadãos desse grupo. Na época, os legisladores utilizaram muitos conceitos e até mesmo a linguagem utilizada por ativistas afro-americanos no passado.

A ativista contra descriminição contra deficientes fisicos, Rebecca Cokley e sua familia. Foto: Arquivo pessoal.

Um dos efeitos da assinatura do ADA foi o aumento exponencial das rampas de acesso. O ato exige que rampas de calçada sejam instaladas ao longo de qualquer rota acessível em uma área pública. A lei, que foi pensada para ser inclusiva para as pessoas com deficiência, acabou ajudando também toda a sociedade. Pais não deficientes com carrinhos de bebê, operários com cargas pesadas e pessoas que usam bicicletas e patinetes como meios de transporte se beneficiaram diretamente dessas rampas.

Voltando à realidade do Brasil, recentemente, muitos trabalhadores receberam suas vacinas em instalações oferecidas pelo Sistema Único de Saúde (SUS), pensadas principalmente para apoiar cidadãos de baixa renda. Como demonstram esses casos, quando membros vulneráveis ​​ou marginalizados de nossa sociedade são apoiados, todos nós somos beneficiados.

Tenho a certeza de que muitos leitores não sabem disso, no entanto, os brancos americanos no Sul dos EUA foram os maiores beneficiários dos direitos civis. Na década após a assinatura das leis pelo então presidente Lyndon B. Johnson (1908-1973), mais infraestruturas públicas foram construídas nesses estados do que nos 100 anos anteriores. Os brancos são os maiores favorecidos simplesmente por serem a maioria vivendo nesses estados.

Em outro exemplo de como os brancos se beneficiaram com uma política progressista, imaginamos que o salário mínimo nos 20 estados mais pobres dos EUA aumentasse. Embora esses estados tenham grandes populações negras, eles ainda são majoritariamente brancos. Nesse cenário hipotético, os brancos seriam os mais beneficiados. No Brasil, pretos, prdos, brancos e indígenas também se beneficiam de recursos governamentais como escolas públicas, bolsa família (recentemente extinto) e o sistema acima, o SUS.

Fragilidade Branca

Como homem afro-brasileiro, somente posso imaginar como deve ter sido para Heather McGhee ter crescido como uma mulher afro-americana no sul de Chicago, uma área segregada e pobre. No caso dos Negros, para os ‘sortudos‘ que sobrevivem, quando chegamos aos 20 poucos anos, somos PhDs em raça. Porém, sempre lembrando de que somos excecoes e contrariamos as estatísticas e como diria Mano Brown: “As exceções custam vidas”.

A vasta maioria dos brancos, no entanto, muitas vezes atingem a idade adulta sem nunca terem discutido sobre raça. Isso leva ao que Robin DiAngelo chama de fragilidade branca. A incapacidade e a inoperância dos brancos de lidar e de discutir sobre o racismo. “Apesar de todas as maneiras pelas quais a segregação visa limitar as escolhas das pessoas de cor, são os brancos que acabam ficando isolados”, diz Heather.

Teoria da Opressão Sistêmica

Na Teoria da Opressão Sistêmica, todos os indivíduos na sociedade assumem o papel de privilegiados ou oprimidos. Portanto, podemos flutuar de oprimidos a opressores, dependendo de características específicas sancionadas pelo grupo dominante. Questões, como cor da pele, religião, habilidade ou gênero desempenham um papel nesses níveis estruturados impostos.

Aos 20 e poucos anos, aterrissei em Paris no dia 14 de setembro de 2001. Dias após o ataque às torres gêmeas, em Manhattan (EUA). Data do nascimento da Islamofobia moderna.

O escritor Guido Melo em Paris, no ano de 2001. Foto: Arquivo pessoal.

Depois de algumas semanas na França, tornei-me muito próximo de um Argelino nascido em Paris chamado Mustapha. Lembro-me de caminharmos para casa pelo décimo primeiro arrondissement depois de uma noite divertida. Após alguns metros a frente, notei a polícia vindo em nossa direção. Acostumado com os camburões do Brasil, fiquei paralisado para aumentar minhas chances de sobreviver ao encontro. O policial me disse para continuar andando. Mustapha foi parado e revistado. Por uns dois minutos, fiquei feliz de não ter sido parado. Honestamente, me senti aliviado por não ser o último na escala racial.

Na época, eu não sabia que estava experimentando o que os acadêmicos chamam de “aversão ao último lugar”. A teoria sugere que as pessoas oprimidas ou marginalizadas estão constantemente preocupadas com sua posição na hierarquia social e, muitas vezes, agem desesperadamente para não serem vistas na base da pirâmide. Segundo Paulo Freire: “Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é tornar-se opressor”.

Hoje, lembrar desse evento me ajuda a entender a luta de mulheres negras, negras e negros trans e de Pessoas com Deficiência (PcD). Embora eu seja oprimido como homem negro, mesmo sem minha intervenção pessoal, sou também o opressor dos grupos citados acima. Somos todos parte de uma máquina de opressão sistêmica, que encarcera e mata todos os dias.

Ao recordar do caso de Paris, admito que posso visualizar os mecanismos que impulsionam o cérebro humano a racionalizar: “O nós contra eles e o cada um por si”. Conheço vários negros, trans, gays e pessoas com deficiência que apoiam os conservadores e suas políticas neoliberais. A humanidade é complexa e querer pertencer pode levar o indivíduo a fazer escolhas equivocadas.

Foco no nosso povo!

Heather acredita que os Estados Unidos podem ser reparados. Para isso, ela sugere que continuemos a oferecer dados, informações e racionalidade aos brancos. Assim, eles perceberão os seus equívocos e os mudarão. Ela espera que eles transformem sua trajetória de destruição e entendam que eles têm tanto a ganhar quanto nós. Talvez até mais, dentro do sistema capitalista eurocêntrico em que vivemos hoje.

Eu sou menos otimista. No caso dos EUA assim como no Brasil, eu não acredito que o odio destilado, ser somente falta de informação. Por isso, recentemente mudei minha perspercivas. Ao inves de tentar convencê-los eu hoje penso no meu povo. Hoje eu abraço o lema da pesquisadora indígena australiana Chelsea Watego:

“Foda-se a esperança! Foco nos nossos!”.

Foto: Monstera/Pexels.

Nunca houve democracia nos EUA

Heather articula esse fato de maneira impecável: “A verdade é que nunca tivemos uma verdadeira democracia nos [Estados Unidos da América… No interesse da subjugação racial, [Estados Unidos da] América atacou repetidamente suas próprias fundações… Da supressão aos votos ao retorno de requisitos de propriedade para se votar. Um segmento de nossa sociedade sempre lutou contra a democracia para manter o poder nas mãos de uma estreita elite branca, frequentemente com o apoio da maioria dos americanos brancos”.

O racismo leva à má formulação de políticas. As leis de igualdade são a única saída para o nosso povo avançar. O historiador Ibram X. Kendi argumenta que ao legislar políticas progressistas, a população seguirá avançando. O progresso virá da legislação, e não do povo.

Ibram Kendi, 39, é escritor, professor, ativista anti-racista e historiador de política racial. Foto: Divulgação.

É possível que o racismo da nossa sociedade seja um tiro pela culatra e que também atinja negativamente as mesmas pessoas (brancas) que deveriam somente se beneficiar do privilégio racial? A resposta é que sim.

O Futuro é Afrotopia

Alguns brancos que estão lendo este artigo podem me acusar de Drapetomania, um delírio branco pseudocientífico. Em seu livro, Afrotopia, o acadêmico Felwine Sarr imagina um futuro Afrotópico, em que as visões afro-centradas comunitárias conduzirão a humanidade. Desde que Isabel de Castela liderou a independência da Espanha dos Mouros do Norte da África, a Europa teve seis séculos para conduzir a humanidade de maneiras sustentáveis.

o escritor senegales Felwine Sarr, 49. Foto: Divulgação.

Em vez disso, o chamado Iluminismo nos trouxe o Racismo, o Imperialismo, a Eugenia, o Colonialismo e, mais recentemente, a Necropolítica e também alterações climáticas globais.  

Ao salvar uma pessoa que está se afogando, é preciso se colocar em uma posição de controle total, não deixando, em hipótese alguma, a pessoa que está sendo salva se agarrar a você. Se você o fizer, ambos podem ser levados pela água.

Imagino que os brancos não queiram se afogar. Neste caso, talvez eles precisem ficar em segundo plano, se não pelos negros e pelos povos do Sul do mundo, pelo menos por si próprios.

Podemos prosperar juntos? Eu não tenho a resposta, mas tenho certeza de que todo o futuro da humanidade depende da Soma de todos Nós.

Foto: Monstera/Pexels.

Referências bibliográficas

Mcghee, H., 2021. The Sum of Us. 1st ed. New York: Allen and Unwin.

Metzl, J.M., 2019. Dying of Whiteness: how the politics of racial resentment is killing America’s heartland. Hachette UK.

Kendi, I.X., 2016. Stamped from the Beginning: The definitive history of racist ideas in America. Hachette UK.

Sarr, F., 2020. Afrotopia. U of Minnesota Press.

Mbembe, A., 2008. Necropolitics. In Foucault in an Age of Terror (pp. 152-182). Palgrave Macmillan, London.

Noel, N., Pinder, D., Stewart III, S. and Wright, J., 2019. The economic impact of closing the racial wealth gap. McKinsey & Company13.

NPR. 2015. In Helping Those With Disabilities, ADA Improves Access For All. [ONLINE] Available at: https://www.npr.org/2015/07/24/423230927/-a-gift-to-the-non-disabled-at-25-the-ada-improves-access-for-all. [Accessed 17 November 2021].

DiAngelo, R., 2018. White fragility: Why it’s so hard for white people to talk about racism. Beacon Press.

Meanjin Magazine. 2021. Always Bet on Black (Power) By Chelse Watego. [ONLINE] Available at: https://meanjin.com.au/essays/always-bet-on-black-power/. [Accessed 17 November 2021].

Freire, P., 1996. Pedagogy of the oppressed (revised). New York: Continuum.

Norton, M.I. and Sommers, S.R., 2011. Whites see racism as a zero-sum game that they are now losing. Perspectives on Psychological science6(3), pp.215-218.

Foto de capa: Monstera/Pexels.

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