Pesquisa do Observatório de Suicídio e Raça revela desigualdade alarmante; estados como Alagoas e Sergipe ultrapassam 90% de casos entre pessoas negras
Um levantamento realizado pelo Observatório de Suicídio e Raça (Obsur), da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), analisou dados de mortalidade entre 2019 e 2022 e revelou um cenário devastador: 82,7% das pessoas que cometeram suicídio no Nordeste nesse período eram negras. A pesquisa foi coordenada pela professora e doutora Ana Karina Azevedo, do Departamento de Psicologia da instituição.
“A gente vê o suicídio sendo tratado como um fenômeno que afeta todo mundo de forma igual, mas quando a gente olha com atenção, os dados mostram outra coisa: o suicídio no Nordeste tem cor, tem gênero e tem território. Ele é majoritariamente negro”, afirma Lucas Maciel, pesquisador do Obsur e um dos autores do estudo.
O perfil mais afetado é o de homens negros adultos, mas em todas as faixas etárias e nos dois sexos, as pessoas negras representam a maioria dos casos. O número desproporcional, mesmo para uma região com população majoritariamente preta e parda.

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Número ultrapassa 90% em alguns estados
O estudo, realizado com base em dados do Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM) do DataSUS, apontou quatro estados com os cenários mais críticos: Alagoas, Sergipe, Bahia e Ceará. Em Alagoas, 94,5% dos suicídios foram de pessoas negras. Em Sergipe, o número se aproxima de 100%.
São dados que, segundo Lucas Maciel, não podem ser dissociados das condições sociais e do racismo estrutural. “Alagoas e Sergipe são estados extremamente perigosos para a população negra viver. Em Sergipe, por exemplo, a chance de uma pessoa negra ser morta em relação a uma pessoa branca é 27 vezes maior”, alerta.
O Ceará, terceiro estado mais populoso do Nordeste, é o segundo com maior número de suicídios. A hipótese dos pesquisadores é que esse número mais alto esteja relacionado à existência de uma Secretaria Estadual de Combate ao Racismo Institucional, que pode melhorar a qualificação dos dados, mas também denuncia a violência cotidiana vivida pela população negra.
Na Bahia, estado com a maior população negra fora da África, os números também são elevados. “Apesar de ser vista como um lugar de pertencimento, a Bahia é extremamente marcada por desigualdades raciais, violência policial e diferenças salariais gritantes entre pessoas negras e brancas. Isso gera um processo de desenraizamento que impacta diretamente na saúde mental”, afirma Maciel.
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Não-pertencimento, racismo e um mundo inviável: as causas para a crise
A análise do Obsur parte de uma epidemiologia crítica, que propõe olhar para além dos números e estatísticas. O grupo utilizou como referencial teórico o conceito de “condições de mundo” – a ideia de que, antes de falar em “escolha” de quem tira a própria vida, é necessário analisar que mundo está sendo oferecido para essas pessoas.
“Não se trata apenas de um sofrimento individual, mas de um sofrimento gerado pelo racismo institucional, estrutural e cotidiano. É sobre viver em um mundo que rejeita, negligencia, isola”, explica Maciel. O estudo cita o Ministério da Saúde, que em 2016 já apontava fatores, como ausência de pertencimento, sentimento de inferioridade, rejeição, solidão e isolamento social como gatilhos para o comportamento suicida entre pessoas negras.

Mesmo em estados onde a população negra é predominante, ela ocupa o espaço da maior vulnerabilidade. “Hoje, independentemente do recorte que a gente faça, o suicídio é negro: seja por faixa etária, por sexo, ou por estado. Mas isso não está sendo discutido, porque o Brasil ainda conta a história única do suicídio – aquela que vê esse fenômeno como algo homogêneo, quase sempre associado a jovens brancos”, reforça Lucas Maciel.
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Políticas públicas falham ao ignorar raça
Apesar da criação da Política Nacional de Prevenção da Automutilação e do Suicídio em 2019, os pesquisadores são críticos em relação à efetividade do instrumento. Para os pesquisadores, a política trata automutilação e suicídio como a mesma coisa, o que é um erro. Além disso, é uma lei rasa, com três ou quatro páginas, sem detalhamento de quem são os responsáveis por capacitar ou notificar os casos.
Maciel defende que há uma necessidade urgente de interseccionalidade nas políticas públicas. “É preciso olhar para o suicídio com raça, com território, com gênero. Senão, vamos continuar construindo políticas que não alcançam quem mais precisa.”

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O grupo por trás da denúncia: Obsur
O Observatório de Suicídio e Raça (Obsur), responsável pela pesquisa, é vinculado ao Grupo de Estudos em Subjetividade e Desenvolvimento Humano do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFRN. Coordenado pela professora Ana Karina Azevedo, o Obsur é composto por estudantes de graduação e pós-graduação, muitos deles também pesquisadores de iniciação científica. Atualmente, o grupo conta com cerca de 20 membros.
Além do estudo sobre o Nordeste, o observatório já prepara pesquisas sobre suicídio da população negra e da população idosa no Norte, e começa a se expandir para outras regiões do país. Assinam o artigo, além de Ana Karina Azevedo e Lucas Maciel, os pesquisadores Pedro Sonehara, Ana Carolina Soares, Bruna Carvalho e Raquel Rodrigues.
A metodologia utilizada tem sido o cruzamento de dados oficiais com uma lente interseccional, buscando trazer à tona realidades ocultas pelas médias estatísticas. “Quando a gente rompe com essa ideia da história única, como diz Chimamanda Adichie, a gente encontra realidades muito diferentes das que estão nos livros. E é nosso papel, como pesquisadores, dar visibilidade a essas histórias”, conclui Maciel.
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“Me reconhecer como pessoa negra foi parte da pesquisa”
Para Lucas Maciel, o impacto do estudo também foi pessoal. “Participar dessa pesquisa me ajudou a me reconhecer como pessoa negra. Isso aconteceu num momento muito delicado, após sofrer uma violência policial. Visibilizar realidades cotidianas que são silenciadas foi e continua sendo algo muito importante para mim.”
Atualmente, ele segue estudando epidemiologia do suicídio, agora voltado à população LGBTQIA+ de Natal. Mas continua conectado ao Obsur. “Mesmo trabalhando com outro tema, eu não largo o observatório. Sigo capacitando novas equipes e puxando discussões teóricas. Porque a gente precisa olhar os dados com profundidade, não como algo frio e solto no mundo.”
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Foto de capa: Alex Green/Pexels.
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