A academia brasileira ainda é um espaço fortemente marcado pela presença branca. A pesquisa mais recente do Censo de Ensino Superior do Inep, de 2018, ilustra essa desigualdade. O estudo aponta que 76% das docentes do ensino superior no país são brancas, enquanto que apenas 23% são negras. Destas, quatro estão à frente das pesquisas sobre Covid-19.
A Doutora e Mestre em Ciências pela Instituto Fernandes Figueira, professora do programa de políticas públicas da Universidade Federal do Piauí (UFPI) e colaboradora da pós-graduação em Medicina Tropical na Fiocruz, Elaine Nascimento, é uma dessas mulheres negras que atua na área de Ciências Sociais aplicadas à Saúde Pública.
Em meio a essa pandemia, a pesquisadora tem discutido dentro e fora da academia que a Covid-19 não é uma doença democrática, mas tem cor e gênero.
Um exemplo da afirmação feita por Nascimento vem de Alagoas. No estado, 71% das pessoas que faleceram por complicações do novo coronavírus são negras. Os dados dos últimos boletins epidemiológicos divulgados pelo Centro de Informações Estratégicas e Resposta em Vigilância em Saúde (CIEVS/AL) — desde a inclusão do fator cor/raça — apontam que houve um número de óbitos maior da população preta e parda (raça negra) em relação às pessoas de raça branca.
Até o dia 2 de agosto, o boletim epidemiológico do estado informava que das 1.594 pessoas que perderam a vida para a Covid-19 em Alagoas, 1090 foram classificadas como pardas, 167 brancas, 52 identificadas como pretas e 285 óbitos não tiveram a cor divulgada.
A professora e pesquisadora da Universidade Federal Fluminense (UFF), Andrea Alice da Silva, fez pós-doutorado pela Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, em 2019. A docente retornou ao Brasil em fevereiro de 2020, mudou a linha de pesquisa e passou a se dedicar a ajudar no diagnóstico da Covid-19.
Já Jaqueline Goes de Jesus, que faz parte da equipe do Centro Conjunto Brasil-Reino Unido para Descoberta, Diagnóstico, Genômica e Epidemiologia de Arbovírus (Cadde), liderado pela médica Ester Sabino, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), sequenciou o genoma do novo coronavírus em 48 horas. O feito tem tempo recorde, levando em consideração outros países.
A pesquisadora em Saúde Pública e chefe do Laboratório de Medicamentos, Cosméticos e Saneantes da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Mychelle Alves, também atua no enfrentamento da Covid-19 nas áreas de vigilância sanitária.
No laboratório, Alves coordena o setor que faz o controle de qualidade de álcool em gel e líquido disponíveis. No tocante à parte dos medicamentos, está acompanhando todas as buscas e eficácia de remédios contra o novo coronavírus.
Presença das mulheres negras nas universidades brasileiras
A docente Regina Lopes nasceu em Salvador, e há mais de 10 anos mora na capital alagoana, Maceió. É doutoranda em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Sergipe (PPGS/UFS), já atuou como docente na Universidade Federal de Alagoas (Ufal), no Centro Universitário CESMAC e na Faculdade de Administração e Negócios (FAN/FGV).
Além disso, Regina realiza pesquisas nas áreas de Segurança Pública, Cidadania e Direitos Humanos, Gestão e Políticas Públicas, Gênero e Diversidade, Território e Meio Ambiente.
A reportagem conversou com a professora sobre a pesquisa do Inep de 2018 que traz o dado de que apenas 23% das docentes do ensino superior do país são negras. Sobre o assunto, Lopes acha que hoje o número pode ter subido para 28%, mas mesmo assim pontua que para entender essa triste realidade precisamos levar em consideração o racismo estrutural que vem sendo debatido na mídia brasileira.
“O tema do racismo vem sendo discutido desde a década de 70 com Abdias do Nascimento e, antes disso, com a movimentação e as discussões do movimento negro unificado, são 42 anos do movimento negro no Brasil. Mas para além disso, nós temos 10 anos do Estatuto da Igualdade Racial.
“Nega-se a presença desses corpos negros. Não só docentes, como também discentes. Hoje, as universidades federais só são compostas por 3% de pessoas negras enquanto estudantes. A própria universidade nega o racismo, literalmente nega. Não é por menos hoje que a gente tem as bancas de heteroidentificação. Porque mesmo com essas cotas, a branquitude, as pessoas, acham que isso é privilégio”, pontua a docente.
A pesquisadora afirma que a problemática não é só uma questão de formação, mas o discurso eurocêntrico da branquitude que permanece ainda com a ideia de meritocracia. Destaca também que, nos processos de seleção para docentes nas universidades públicas, fica subentendido que existe um lugar que se diz não ser da população negra.
“É lógico que isso vai e vem impactando a vida das pessoas pretas. Se você pegar as pesquisas sobre a ascensão, sobre o nível de formação educacional de pessoas pretas e pessoas brancas, você vai perceber a disparidade absurda. Falar de universidade é falar de um lugar, é falar de um lugar eurocêntrico, é falar de um lugar de exclusão”, defende.
Lopes diz que o espaço da universidade é o reflexo da configuração de sociedade na qual vivemos. E ainda afirma que mesmo tendo uma presença pequena de corpos negros na docência universitária, essas pessoas também são invisibilizados.
“A gente tem duas questões muito problemáticas. A presença real de mulheres negras, mínima nas universidades, é uma questão que tem a ver com esse sistema estruturalmente racista que incute em nós que esse lugar não é nosso e não nos pertence.
“Tem também a outra base nesse processo que, mesmo quando nós temos mulheres negras na universidades, elas são invisibilizadas. Nós estamos construindo história, nós estamos construindo ciência há um bom tempo. Só que a nossa ciência é menosprezada, é questionada. A produção acadêmica negra é inferiorizada diante de uma ciência eurocêntrica”, acrescenta.
Ao concluir, a docente cita uma das grandes lideranças e intelectuais do Brasil como a única docente negra nos anos 70. Lélia Gonzalez lecionava na PUC do Rio de Janeiro, mas segundo Lopes ficou invisibilizada ao longo de décadas no Norte e Nordeste. “A gente percebe hoje o quanto essas referências foram abrindo caminhos: Lélia Gonzalez, Neusa Santos e Beatriz do Nascimento. Essas mulheres sempre tiveram aí”.
Bolsas de pesquisa
De acordo com matéria publicada no site Gênero e Número, em relação à distribuição das bolsas de pesquisa, há marcas de desigualdade de gênero e raça. Segundo o portal, apenas 15% das docentes das universidades do país conseguem ter esse suporte. Neste caso, 2,6% são negras, enquanto as brancas representam 12,3%.
Diante deste cenário, é de fundamental importância pensar nas políticas de ações afirmativas na pós-graduação para a docência no intuito de reduzir a desigualdade entre negros e brancos, apesar de todos os ataques do Governo Federal.
Já houve tentativas de negar políticas de ação afirmativa para o ensino superior pelo próprio ex-ministro da Educação, Abraham Weintraub. O ex-titular da Pasta revogou uma portaria de 2016 que estimulava a inclusão de pessoas com deficiência, negros e indígenas nos programas de pós-graduação antes mesmo de efetivar a demissão, em junho deste ano.
Foto de capa: Reprodução/Facebook Mychelle Alves.
É Jornalista e escritor. Morador da periferia. Autor de “Os deuses estão embriagados de uísque falsificado” (Sirva-se edições alternativas – Oxenti Records, 2019). Vencedor dos prêmios: IV Concurso de Poesias Jorge de Lima, Secult – AL – 2018, Arte como Respiro, Itaú Cultural – 2020. Editor do site: O que os Olhos Não Veem. Estudante de Letras – Português, da Universidade Federal de Alagoas (Ufal). Acredita no jornalismo independente, pautado pela diversidade e pelos direitos humanos.