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A América Latina também é negra, não?

Ontem, já depois das 23h, eu ainda não havia conseguido decidir sobre o que iria escrever aqui. Eu tinha algumas ideias, e até comecei a trabalhar em uma delas, mas não parecia fazer muito sentido dar seguimento àquilo. Passeando pelo Twitter, acabei esbarrando com um tweet que circulou bastante e certamente despertou a atenção de muita gente. Em poucas palavras, o autor anunciava: “Negros NÃO SÃO latino-americanos”; e recomendava: “parem de pagar mico”.

Ora, por que não seríamos latino-americanos? Tentando entender, eu acabei descobrindo que se trata de uma proposição feita pelo filósofo panafricanista e antimarxista Carlos Moore. Se compreendi bem, a proposta parte do lugar de que a ideia de América Latina é uma invenção de intelectuais franceses durante o governo de Napoleão III (1808-1873), em face da disputa colonial com a Inglaterra, para justificar a dominação sobre o México. Nesse sentido, os que se dizem latinos são os descendentes de europeus; negros são africanos em diáspora (uma particularidade do pensamento panafricanista, que não vai ser o tema desta discussão).

A afirmação de que negros NÃO SÃO (em caixa alta, como ele colocou) latino-americanos me deixou muito inquieto. Fui dormir às quatro da manhã matutando sobre o assunto, tentando entender o meu próprio estranhamento. Partindo desse lugar, eu busquei desenvolver algumas reflexões, as quais eu vou tentar desenhar e compartilhar aqui.

A primeira coisa que me incomodou foi essa concepção rígida, fechada e ultrapassada de “América Latina”. Logo me veio à cabeça a noção de que, para a historiografia, nenhum conceito é fechado, nenhum conceito é imutável ou inflexível. Esse é um princípio muito básico dos estudos de teoria da História, simplesmente porque historiadores trabalham com o tempo. O que quero dizer é que as palavras (ou a ideia que elas comunicam) mudam no decorrer do tempo, e sempre que se coloca alguma coisa em perspectiva histórica, deve-se considerar também a historicidade das ideias que envolvem essa determinada coisa.

Portanto, é curioso o fato de análise partir desse lugar de que a América Latina é uma “invenção napoleônica”, como se isso fosse um dado encerrado. No decorrer da História, tanto a América Latina enquanto bloco geopolítico quanto a própria ideia que se faz de “América Latina” e “latino-americano” mudaram bastante, e hoje certamente representam algo muito diferente do que pretendia o sobrinho de Bonaparte.

O próprio primeiro uso do termo “América Latina” é algo discutido. Embora tenha sido consenso atribuir o grande invento aos intelectuais franceses da metade da década de 1860, há registros de jornalistas, intelectuais e juristas hispano-americanos empregando o termo pelo menos uma década antes. Tão diversos quanto as suas origens possíveis, são os sentidos que a expressão teve e ganhou no desenrolar deste século e meio de existência.

Quando das homenagens aos responsáveis pelas conquistas de independência das repúblicas da América Espanhola, o termo “América Latina” representava um projeto de futuro com vistas a uma grande integração nacional pelo continente. Quando da invasão francesa no México, “América Latina” caiu em desuso por causa da associação do senso de “latinidade” ao conservadorismo europeu. Quando do avanço da hegemonia estadunidense, “América Latina” tornou a ser uma proposição anti-colonial e, agora, anti-imperialista também. O Brasil, porém só passou a fazer parte do que se entende por América Latina na primeira metade do século XX (o que é uma outra discussão).

Nesse raciocínio, o que percebo é que hoje a identificação com a categoria política de “latino-americano” costuma ser reivindicada no cerne de proposições anti-imperialistas e anti-coloniais de mundo. As pessoas brancas que têm muito claramente a ascendência europeia na história da família frequentemente reivindicam uma adjetivação pátria ligada ao continente europeu, em detrimento da identificação latino-americana. São os descendentes de italianos, alemães e portugueses; os latino-americanos raramente integram esse mesmo balaio.

O meu segundo incômodo — que, aliás, decorre dessa percepção a-histórica de “América Latina — tem a ver com a desconsideração em relação à história do povo preto na América. São pelo menos 500 anos contados da colonização europeia até hoje. 500 anos marcados, sim, pela violência e pelo genocídio, mas também por muita luta e resistência que, de algum modo, garantiram a nossa sobrevivência aqui. São pelo menos 500 anos de vida e resistência negra no território americano. Um território que não só nos atravessa e faz parte de nós, nos âmbitos da ancestralidade e da construção do sentimento de pertença, mas que também somos nós mesmos esse território.

A referência em África, sem dúvida, é necessária, importante e significativa. Dizer-se um negro latino-americano não põe isso em cheque; antes, coloca-nos diante dos nossos desafios políticos dentro do território que nos constitui, queiramos nós ou não. Lélia Gonzalez, por exemplo, sinaliza, a partir da ideia de amefricanidade, que é possível pensar uma construção identitária que incorpore a história e as dinâmicas culturais (de adaptação, resistência e reinterpretação) latino-americanas, sem que isso signifique perder ou se desvincular do referencial afrocentrado.

A América Latina é histórica e marcadamente um espaço de resistência anti-colonial. Resistência essa que, seja aqui, no Nordeste do Brasil, ou nas ilhas caribenhas, tem sido vivida e articulada sobretudo pelo povo preto. Parece fazer sentido, portanto, reivindicar como nosso esse território — e, com ele, o adjetivo pátrio e a categoria de afirmação política que vem junto. É aqui que vivemos, é também aqui que se passa boa parte da nossa história; é aqui, enfim, que lutamos e resistimos todos os dias. A América Latina também é negra.

Foto de capa: Divulgação.

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