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Mas e se fosse o meu tataravô?

A nova onda antirracista, pode-se dizer, é iconoclasta. Há algo de particularmente excitante para um historiador interessado nas disputas por memória em ver emergir, ao redor do mundo inteiro, movimentos questionando a presença de monumentos em homenagem a escravocratas, traficantes de escravos, bandeirantes (no caso brasileiro) e colonizadores em geral.

Como o nome “disputa” sugere, essa problemática não se dá unilateralmente. Tão logo os ataques aos amontoados de rocha ou metal começam, surgem também os “advogados de estátua”, questionando os questionamentos. Os argumentos mobilizados pelos que defendem a manutenção dos bustos e esculturas são ora desinteligentes, ora risíveis, mas sempre atravessados por uma carga cruel de violência (que, por vezes, passa despercebida).

Há quem diga que a derrubada desses monumentos resultaria numa perda inestimável de importantes registros históricos; ou que, em outras palavras, a história sobre os acontecimentos em torno dessas figuras desapareceria para sempre. Têm também os emocionados argumentos de ordem pessoal, condensados na cômica indagação: “E se a estátua fosse do seu tataravô?” (risos). Em defesa da iconoclastia antirracista, é possível responder a essas duas argumentações de maneira relativamente simples.

Um delegado de polícia próximo à estátua derrubada de um soldado Confederado, em frente ao antigo Tribunal do Condado de Durham, em Durham, Carolina do Norte. Foto: REUTERS/Kate Medley.

Ao primeiro argumento, poderíamos responder, em primeiro lugar, que a despeito da possível “perda da história”, a própria derrubada é a história sendo feita! Ora, que é a História senão esse espaço confuso e (frequentemente) caótico de disputa? E que forma mais viva de disputa poderia existir que não essa? A história da violência da colonização (já amplamente documentada) não vai ser perdida porque um monumento a um colonizador foi retirado de uma praça. Não é assim que funciona.

Em segundo lugar, esse tipo de monumento (estátuas, bustos, nomes de rua, placas, etc), quando em praça pública e não em museus, cumpre a função de homenagem. Que tipo de sociedade escolhe traficantes de escravos e colonizadores assassinos para serem homenageados? Você acha mesmo que eu, descendente daqueles que de alguma forma sobreviveram a essa violência, quero viver nesse lugar? Esse tipo de argumento é violento porque sugere que tudo bem viver em uma sociedade que homenageia os responsáveis pela morte dos meus ancestrais.

Ao segundo argumento, a resposta vem com a garganta travada. Eu não sei nem quem foi nenhum dos meus tataravós. Dos meus avós paternos (minha família materna é branca), eu só sei que minha avó nasceu no interior da Paraíba e meu avô no Piauí. Se meu tataravô fosse um colonizador “digno” de honrarias e homenagens, eu provavelmente seria branco e minhas condições de vida seriam tão diferentes quanto seriam meus conhecimentos sobre os meus ascendentes familiares. Portanto, não me cobre empatia pelo volume metálico que simboliza seu tataravô. Se ele estivesse vivo, provavelmente iria me querer morto. Que morra o busto dele também.

Foto de capa: Reprodução.

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