“Raiva é uma das coisas que eu mais escrevo nas minhas músicas, porque é uma coisa que a gente sente muito – e de várias formas. Eu sinto, as pessoas dizem que eu não deveria sentir. Porque é isso também: nós mulheres negras, na nossa vida, a gente vai estando em lugares como se a gente precisasse sempre se esforçar mesmo”. É o que reflete a multiartista CABULOSA, enquanto se move inquieta, o corpo acompanhando o balanço ritmado da cadeira. A voz carrega um tom de quem já refletiu sobre, mas ainda sente o peso da questão.
Desde os nove anos imersa na arte, Alanda Freire, conhecida artisticamente como CABULOSA, é rapper, DJ e Técnica em Dança pelo Centro Cultural Bom Jardim (CCBJ). Atualmente, aos 21 anos, cursa Licenciatura em Dança na Universidade Federal do Ceará (UFC), integra a Cia de Dança Anagrama e pesquisa o funk no grupo Solta o Ponto Batidão. Seu trabalho transita entre música, audiovisual e dança, explorando essas linguagens a partir de seu próprio corpo.

Foi na dança que tudo começou. No CCBJ, iniciou suas experimentações com a dança contemporânea, segmento este que não segue uma técnica única estabelecida, mas se constrói a partir das possibilidades de movimento do corpo.
Por um tempo, porém, não sentia prazer em dançar e se dedicava apenas pela disciplina de ser uma bailarina exemplar. “Eu ‘tava lá só pela disciplina, que é uma coisa muito exigida na dança também. Você ter disciplina pra ser um bailarino do grupo de baile, pra você dançar nos espetáculos. Tanto dessas coisas ruins de pressão, de me sentir muito pressionada, no período que era a pré-adolescência. Era bem difícil esse lugar de intensidade, de dedicação mesmo”, explica a cearense.
Suas férias eram dedicadas a ensaiar para conseguir vaga no balé. Consequência disso foi a aspiração por querer dar aulas dentro de “uma indústria ainda muito falha nesse lugar de formação de crianças”, como ela diz.

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Em sua vida, à medida que crescia e entranhava mais na dança, a sua pré-adolescência foi sendo marcada pelo consumo de músicas estadunidenses de artistas brancos. Transitando entre o indie e o rock, a sua trilha sonora retratava um lugar que pouco dialogava com a sua identidade. E ali, surgiram os questionamentos sobre sua autoestima e identidade em um mundo pautado pela construção social de uma feminilidade moldada sob um olhar eurocêntrico, no qual meninas negras crescem cultivando um olhar de desafeto por suas características negroides. E os cabelos crespos aos lábios volumosos e narizes largos como algo a ser corrigidos.
“Eu fui conhecendo outras influências. E quando eu entendi esse lugar de me achar bonita, de olhar pra mim, eu comecei a perceber também o que é que parecia comigo, né? E o que fazia sentido pra mim”, conta a artista CABULOSA.
Criada em um ambiente onde a música não era tinha tanta presença, CABULOSA encontrou no rap e no trap um meio para encontrar a própria identidade. Sua irmã mais velha, Amanda Freire [Amanda Quebrada], também artista, foi a primeira influência nesse universo.
Foi durante o ensino médio, em 2018, que o trap começou a se destacar no Brasil. Nomes, como o grupo Recayd Mob dominaram a cena nacional, trazendo novas sonoridades e estéticas para o rap. No meio desse movimento, ela encontrou um universo que logo tornou-se seu. A descoberta veio acompanhada de um processo de pesquisa e identificação. Ao explorar o gênero, apanhou referências de rappers negras que se destacavam pela atitude e estética.

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“E a partir disso, eu simplesmente comecei a pesquisar muito. E me identifiquei, vi tantas negonas lindas. E comecei a me vestir parecido. Então, eu assistia tudo. Eu lia, via séries. E… realmente consumiu e mudou a vida total. Me achei”, relembra, sorrindo como quem revivesse a fase de descoberta.
Entender-se no mundo só se tornou possível quando mergulhou em pesquisas sobre tudo que atravessa os corpos negros. O que mais a inquieta, além da violência do apagamento cultural, é perceber que, para se reconhecer em uma cultura, precisou buscar por conta própria.
Ainda na adolescência, se engajou nas redes sociais, especialmente no Instagram. Ali, sua relação com a música ia além da audição, manifestava-se na estética; na forma como se vestia, se movimentava e se apresentava ao mundo. Nesse caso, no Instagram [na rede social] também.
O nome CABULOSA nasceu sem grandes pretensões, num instante de impulsividade ao modificar o usuário no Instagram. Até então, assinava apenas como Alanda Freire. Mas veio a vontade de experimentar algo novo, algo que carregasse mais a presença que queria. A inspiração surge de uma música que gostava muito: “Preta Cabulosa”, de Kmila CDD.
“Preta cabulosa que vem tremendo o chão
Ponto trinta de palavras com muita munição
Com as amiga ou sozinha, sou eu que me garanto”
Tudo começou a se concretizar quando sua irmã, Amanda Quebrada, já circulava na festa Crioula, coletivo LGBTQIAPN+ favelado de música, performance e audiovisual preto. Foi nesse ambiente que se aproximou de algumas referências da cena de Fortaleza (CE). O convite para tocar surgiu ali, em 2022, e sua primeira experiência como DJ aconteceu justamente na Crioula. “Foda”, resume o dia, entre os lapsos de memória.
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O talento para dizer “NAM, MAN“
Atualmente, além de DJ, é rapper. A trajetória aconteceu de forma natural, quando se percebeu refletida nas músicas que incluía em seus setlists. Até o momento, já são três faixas autorais, sendo a mais recente, nomeada “NAM MAN”, a que conquistou uma visibilidade significativa.
Sua nova música nasce de um incômodo, sendo um manifesto sobre a dificuldade de impor limites, especialmente para mulheres negras, frequentemente forçadas a se conformar ao silêncio ou à passividade.

A inspiração para a música veio de vivências suas e principalmente a de uma amiga, que enfrentava as consequências de não ter sido capaz de dizer “não” quando deveria. “Minhas músicas surgem de questões que, muitas vezes, estão muito presentes na minha cabeça”, explica. “Eu estava extremamente incomodada com o que minha amiga estava passando. Ela simplesmente não conseguia dizer ‘não quero’. E sei que muitas pessoas enfrentam essa dificuldade, especialmente mulheres negras, que muitas vezes se veem nesse lugar de passividade”, conclui.
Mais do que um desabafo pessoal, a música é cantada diretamente para quem escuta, como se falasse à própria amiga. No grave da batida, a raiva se mistura à urgência de reafirmar a autonomia, que se entrelaça com a raiva que sente em ser posta em situações como essas. É uma música sobre quebrar o ciclo da benevolência forçada e assumir o direito de negar o que não se quer.
“Então, tal hora eu meto um lance dos sonhos, né? De que eu só invisto nos meus sonhos. Nesse lugar também de entender que o que eu sinto, a minha intuição, ela é legítima pra mim e é o mais importante, sabe? Não importa se vão dizer que eu sou agressiva, enjoada”, fala CABULOSA.

A agressividade é um sentimento recorrente em suas músicas, vindo de um lugar legítimo que a impulsiona a desafiar e questionar espaços. E, ao fazer isso, ela pretende convidar aquelas que escutam seu som a apontar o dedo e dizer “nam”.
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Fortaleza tem o flow próprio
Encontrando em Fortaleza o lar para sua musicalidade, a rapper molda seu flow a partir das ruas, absorvendo a oralidade, os trejeitos e a expressão regional da Capital cearense. Mesmo ao introduzir termos em inglês, valoriza a conexão com o cotidiano e busca expandí-la, transportando a cultura da Terra do Sol para outros cantos do Brasil.
“Inclusive, pessoas daqui, que estão em São Paulo vivendo a sua vida chata de São Paulo. Poder ter esse escape de falar um ‘nam’ na música, que talvez não tenha falado há muito tempo”, comenta, lembrando que entre seus ouvintes há alguns que vivem na Capital paulista.
Para ela, compor é como montar um quebra-cabeça, onde cada palavra tem seu lugar exato. Gosta de brincar com as construções, misturando elementos da sua vivência com referências que ressoam com sua visão artística. Nesse processo de afirmação, encontra a sua liberdade.

E é essa liberdade que guia seu próximo lançamento: um EP que transita por diferentes gêneros, tendo o trap e o boombap como principais vertentes. Mais do que um conjunto de músicas, ela idealiza o projeto como um retrato de Fortaleza, “quente, muito quente”, como descreve. Configura mentalmente com uma fase de experimentações, pensando de alter ego à modulação de voz.
Quando questionada sobre o que pretende firmar em sua arte, a resposta vem sem hesitação: “A negritude sempre. Vai estar em tudo, porque… é eu. Nossas pesquisas sempre são sobre nós mesmos porque temos muito a falar. E as pessoas, por muito tempo, falaram pela gente”, enfatiza CABULOSA. A pesquisa sobre suas origens e bagagens se conectam com sua criação artística, um processo de olhar para dentro e transformar em arte aquilo que é sempre contado por outros. “E ainda tem muito branco falando sobre a gente, pesquisando a partir de um lugar que não é deles”, reflete.
Além da música, CABULOSA tem pensado em construir algo cênico, ampliar as possibilidades do palco e do audiovisual para expressar ainda mais sua identidade.
No fim, o que move a cearense é a ideia de continuidade. De pensar que sua trajetória foi transformada pelas referências que encontrou, por mulheres pretas que abriram portas e mostraram possibilidades. Agora, ela espera ser esse espelho para outras pessoas. “Eu sei o quanto foi importante pra mim olhar e dizer ‘Nossa, eu posso fazer isso também’. Então, se tudo que eu faço servir de referência pra alguém, já valeu. No final das contas, é isso que importa. A gente vai construindo e deixando um caminho pra quem vem depois”, finaliza.
Foto de capa: Naryane Gomes.
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Estudante de Jornalismo pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Com uma paixão por contar histórias ignoradas pela mídia tradicional, dedica-se ao jornalismo de denúncia e celebração, principalmente ao jornalismo negro. Busco potencializar as vozes não ouvidas e trazer à tona narrativas raciais e sociais que importam: a celebração e resistência negra. Acredito no poder transformador da informação e no papel do jornalista como agente de mudança, comprometida com a justiça social e promoção da diversidade.