“Lutamos em uma guerra imoral que não era nossa, por direitos que nós não tínhamos.” Essa é uma das falas mais icônicas do filme Da 5 Bloods (Destacamento Blood), o primeiro do diretor Spike Lee, 63, distribuído pela Netflix, lançado em 2020.
O longa-metragem de mais de 150 minutos conta a história de quatro amigos, veteranos da Guerra do Vietnã, que retornam ao país em busca dos restos mortais do líder do grupo e de um tesouro escondido por eles durante a guerra.
Em 1954, após tornar-se independente da França, com interferência da Conferência de Genebra, o Vietnã se preparava para realizar a primeira eleição presidencial. O pleito deveria unificar o país, que até então estava dividido em dois governos: no norte, apoiado pela União Soviética; e no sul, apoiado pelos Estados Unidos.
Com o apoio dos EUA, o governo do Sul, liderado por Ngo Dinh Diem, deu um golpe militar que iniciou uma guerra civil. Até então os norte-americanos estavam envolvidos apenas com o fornecimento de armas, treinamento e munição, até que em 1963, decidiram atuar diretamente num dos maiores conflitos do mundo, que deixou mais de 2,5 milhões de mortos.
Os amigos, Paul (Delroy Lindo), Otis (Clarke Peters), Melvin (Isiah Whitlock Jr.) e Eddie (Norm Lewis), lutaram nessa guerra e se autodenominavam Da 5 Blood (Destacamento Blood), liderados por Norman Holloway (Chadwick Boseman).
Norman era um líder inteligente e sensato e tinha a consideração de todos os membros do grupo, mas acabou morrendo na Guerra do Vietnã. Seu discurso parecia unir os ideais de Martin Luther King Jr. e Malcolm X.
Mais de 40 anos depois, os veteranos do Da 5 Bloods retornam ao país, que está totalmente diferente. Mas o longa une passado e presente de forma didática para contar a história dos amigos, num filme que trata de guerra, racismo, trauma psicológico ocasionado pela guerra e ganância.
Além da busca pelos restos mortais do amigo, o grupo procura por um tesouro que esconderam, o que vai gerar muita briga e desconfiança entre eles.
Os desdobramentos desse retorno, que reativa memórias densas e tristes, mescla imagens dos Bloods durante a guerra e une imagens documentais da violência que foi aplicada na Guerra do Vietnã (1965-1975).
A obra destaca a brutalidade dos Estados Unidos nos eventos deste conflito, especialmente com o bombardeio de Napan, o uso de armas químicas para destruir o solo fértil, e o assassinato e estupro de civis em My Lai. Essas memórias fizeram parte da guerra e marcaram milhares de soldados, como o personagem Paul, um dos mais traumatizados dos Blood’s.
Uma marca interessante deixada pelo diretor é o fato de não usar atores jovens para representar os personagens principais quando retratam os momentos da guerra. Tanto no passado, quanto no presente, temos os mesmos atores representando os personagens, exceto Norman, que morreu no passado.
Destacamento Blood é um filme de guerra, de ação. Porém, diferente do que estamos acostumados a ver no cinema, onde os heróis de guerra são sempre brancos (como nos filmes do Sylvester Stallone, Van Damme e Chuck Norris), esses heróis reconhecidos e exaltados por Spike Lee, com todos os defeitos e traumas causados pelo conflito, são negros.
O histórico de afro-americanos em combates é realmente extenso, de conflitos menores a grandes guerras, e esse número geralmente alcança um terço do contingente total. Ainda assim, o número de filmes de guerra com protagonistas negros é mínimo.
Racismo é um dos destaques do longa
Além de unir passado e presente, Spike Lee mostra elementos de documentário nos primeiros três minutos do filme, com imagens reais da Guerra do Vietnã, além de apresentar os discursos de Muhammad Ali (1942-2016), Angela Davis, 76, Malcolm X (1925-1965), Martin Luther King Jr. (1929-1968) e outros.
Um dos discursos que mais chama atenção foi proferido em 7 de abril de 1968, pelo ativista cofundador dos Panteras Negras, Bobby Seale, 83. Bobby faz um relato em números, referente aos afro-americanos em guerras.
Segundo os dados, na Guerra Civil mais de 186 mil negros lutaram por uma promessa de liberdade que não foi concedida; na Segunda Guerra Mundial (1939-1945), 850 mil negros participaram.
Também são extremamente altos os números que Spike Lee expõe no filme. 32% dos soldados americanos no Vietnã eram negros, sendo que a população afro-americana representava 12% da população do país na época.
Há um trecho importante onde o diretor aponta essa disparidade entre negros e brancos escolhidos para estar na linha de frente da guerra. Os Blood’s ouvem o anúncio do assassinato de Martin Luther King Jr. pela rádio vietnamita, que diz: “soldados negros, é justo servirem mais que os americanos brancos? Enquanto vocês estão lutando contra nós, milhares de negros lutam em 122 cidades nos Estados Unidos”.
Psicológico afetado pela guerra
Paul é um dos personagens mais dramáticos do filme, que carrega uma culpa que nenhum dos amigos conhece e não vamos contar aqui (porque seria spoiler). Além disso, ele traz marcas que mostram o quanto seu psicológico foi afetado pela guerra.
Delroy Lindo, que interpreta Paul, vem sendo aclamado em todas as críticas feitas ao filme. Não por acaso, uma vez que o ator tem monólogos incríveis e uma interpretação impecável e nos faz crer naquela dor e/ ou mesmo associar esse sofrimento a pessoas reais.
Críticas dos vietnamitas
Embora Da 5 Bloods tenha tido críticas positivas ao redor do mundo, os vietnamitas não ficaram contentes com a forma que o país e a população foram retratados no filme. Segundo a maioria dos críticos do Vietnã, Spike Lee não respeitou a identidade e a cultura do país e criou caricaturas que não fazem parte da nação no século XXI.
Algumas das principais críticas referem-se ao fato de o filme, por diversas vezes, mostrar acidentes com minas terrestres explosivas, que já não são comuns no país.
As críticas também se estendem à cena onde os amigos estão em Saigon e são surpreendidos na saída do bar por uma criança que os assusta com fogos de artifício. Fogos de artifício são proibidos no Vietnã.
Outra parte controversa é quando os Bloods recusam um guia local para entrar na floresta em busca do tesouro que esconderam durante a guerra.
Spike Lee
O cineasta é, sem dúvidas, uma das mais importantes vozes da cultura negra, especialmente pelo trabalho que tem no audiovisual trazer debates raciais escancarados, como em poucas obras norte-americanas.
Mesmo antes de ganhar mais destaque, a partir do filme Infiltrados na Klan (2018), o diretor já vinha discutindo as mais diversas pautas raciais, seja ao falar sobre relacionamento inter-racial, como fez em Febre da Selva (1991), apresentando a biografia de Malcolm X (1992), ou falando sobre as tensões raciais urbanas, como em Faça a Coisa Certa (1989).
Ficha técnica
Da 5 Bloods (Destacamento Blood)
Ano: 2020
País de origem: Estados Unidos
Duração: 154 minutos
Gênero: Filme de guerra/Drama
Direção: Spike Lee
Produção: Jon Kilik, Spike Lee, Beatriz Levin e Lloyd Levin
Roteiro: Danny Bilson, Paul de Meo, Spike Lee e Kevin Willmott
Elenco: Delroy Lindo,Jonathan Majors, Clarke Peters, Norm Lewis, Isiah Whitlock Jr., Mélanie Thierry, Paul Walter Hauser, Jasper Pääkkönen, Jean Reno e Chadwick Boseman
Disponível: Netflix
Foto de capa: Divulgação/Netflix.
Formada em Jornalismo e com especialização em mídias digitais, a baiana tem dedicado sua carreira ao mercado audiovisual há oito anos, quando iniciou na área. Já atuou como produtora executiva em obras para a televisão e em diversas funções dentro da produção de uma obra. Apaixonada por filmes e séries, se considera uma viciada que assiste mais de seis obras por semana.