Em 2020, a HBO lançou a série inglesa I may destroy you (Eu posso te destruir), narrando a história da personagem Arabella Essiedu, uma escritora que inicia uma jornada para reconstruir suas relações após colocarem drogas em sua bebida. Estrelada, dirigida e roteirizada pela artista Michaela Coel, 33, a série recebeu importantes críticas positivas da mídia, chegando a ser indicada como uma das melhores séries do ano de 2020. O drama teve 97% da aprovação dos usuários no Rotten Tomatoes, plataforma agregadora de críticas.
Há algum tempo falamos sobre a atuação de Michaela Coel na série Black Rising Earth (2019) e toda a potência que ela reflete na tela, por isso, não foi surpresa vê-la explodir e se destacar ainda mais na série da HBO, especialmente ocupando funções tão diversas.
Na série, ela vive a protagonista Arabella. Jovem, independente e moderna, a personagem está buscando inspiração pra escrever seu segundo livro. No início da série, acompanhamos Arabella saindo de uma festa com alguns amigos, na qual se diverte, bebe e dança. Apenas no dia seguinte à cena da festa, começamos (espectador e personagem) a entender que algo de errado aconteceu na noite anterior.
Acreditando que foi testemunha de um crime contra outra pessoa, Arabella procura a polícia para prestar queixa e denunciar o crime, apesar de não se recordar contra quem e qual a violência foi cometida. É apenas na delegacia, após interferência de uma policial, que ela começa a compreender que o crime foi cometido contra ela. Arabella foi drogada e estuprada por um desconhecido.
A descoberta é chocante para Arabella, que é submetida a uma sequência de exames, mas não se recorda de nada do que aconteceu. Ela foi drogada com o famoso “Boa noite, Cinderela”, uma mistura de substâncias alcalóides que são potencializadas quando misturadas ao álcool, deixando a pessoa inconsciente. O golpe é antigo e comum em festas e, geralmente, destinado ao abuso de mulheres.
I may destroy you nos apresenta algumas temáticas que já foram exploradas pelo audiovisual, muitas vezes equivocadamente, mas também reconhecemos questões que poucas vezes foram expostas numa série ou no cinema, como por exemplo, violência sexual contra homens. A obra expõe temas polêmicos, como estupro, relações abusivas e uso de drogas de forma intensa e perturbadora, porém com uma dose de humor em algumas cenas.
E é uma obra também sobre a memória, que é onde guardamos todas as informações disponíveis e acessamos também quando queremos recuperar algum dado, as lembranças. Quando somos privados da possibilidade de armazenar ou de relembrar algum fato, nos sentimos desconfortáveis.
Arabella começa uma jornada para descobrir ou tentar relembrar quem foi seu algoz e o que aconteceu na noite em que foi violentada. Assim, ela começa uma busca por informações que possam ajudá-la a recordar. Enquanto isso, a polícia também inicia uma investigação sobre o crime, mas sem sucesso, encerram o caso.
Psicologicamente abalada, ela conta com seus melhores amigos Terry (Weruche Opia) e Kwame (Paapa Essiedu), que estarão ao seu lado, compartilhando sua dor e buscando todas as estratégias possíveis para ajudar a amiga. É quando conhece o escritor Zain Tareen (Karan Gill) e começam um relacionamento, no qual ela é novamente violentada. A violência contra a mulher pode ocorrer de diversas formas, seja ela moral, psicológica, física, patrimonial ou sexual, as mulheres estão sempre expostas. A série nos faz questionar: Afinal, o que é violência sexual, o que é estupro?
Em 12 episódios de 26 minutos, a série não trata apenas da violência sexual sofrida duas vezes pela protagonista, mas traz histórias paralelas que são tão penetrantes quanto a principal.
Assistimos à mudança de personalidade de Kwame, que passa de um jovem extrovertido para uma pessoa calada e também sofrida, que opta por esconder seus sentimentos e problemas para continuar cuidando da amiga Arabella. Kwame é sexualmente violentado e também presta queixas na delegacia. E aí somos apresentados a diferença no tratamento dado a um homem gay que é violentado, sendo questionado sobre suas atitudes a cada minuto.
Não que seja diferente com uma mulher, mas parece presumível (aos olhos da sociedade) que uma mulher seja estuprada, mas um homem não possa. A lógica machista diz que o homem gay deveria ter gostado de ser violentado, e que a mulher foi causadora da sua própria violência por conta de suas roupas, do local onde estava, do seu comportamento e de tantos outros absurdos.
Acompanhamos a difícil relação de Arabella com o traficante de drogas italiano Biagio (Marouane Zotti), por quem nutre uma intensa paixão, mas tem uma relação extremamente abusiva. Vemos nessa relação algo muito cotidiano: Biagio culpa Arabella por ter sido violentada. Insinua que suas roupas, seu jeito e o fato de estar numa festa a levaram aquele lugar. O machismo cotidianamente acusa mulheres de serem causadoras de seu próprio sofrimento.
Nos 12 episódios, a série ainda consegue falar de racismo e xenofobia (Arabella nasceu em Gana), quando, por meio de flashbacks, conhecemos as personagens adolescentes de Arabella (Danielle Vitalis), Terry (Lauren-Joy Williams) e Theo (Gaby French/Harriet Webb). Theo é branca e trama para que um colega negro da escola seja acusado de estupro, destacando o racismo no Reino Unido.
A série também fala sobre as redes sociais e como elas podem ser perigosas. Como a busca por likes e por oportunidade de ser visto, coloca as pessoas num lugar “influenciador”, mas nem sempre essa influência pode ser positiva. O tema está diretamente ligado a Arabella, que acredita que sua voz pode influenciar outras pessoas por meio da internet, usando as redes sociais como uma válvula de escape para seus próprios problemas.
Com um título tão forte, o conteúdo da obra e o desempenho dos atores não poderia ser menos poderoso e profundo. Michaela Coel, Weruche Opia e Paapa Essiedu dão um show de interpretação com personagens que poderiam ser pessoas comuns que estão ao nosso lado e passam por situações de violência diariamente.
O elenco principal é predominante negro, expondo temas densos e urgentes numa única obra. A série faz jus ao título que diz “Eu vou destruir você”, expondo o machismo que violenta e mata mulheres, o racismo que suga o psicológico de pessoas não-brancas, a LGBTfobia, o uso excessivo das redes sociais e muito mais. Paramos os spoilers por aqui, esperando que você tenha se animado para assistir a série.
Ficha técnica
I May Destroy You
Ano: 2020
País de origem: Reino Unido
Gênero: Drama
Duração: 12 episódios de 30 minutos
Classificação: 16 anos
Direção: Michaela Coel, Sam Miller
Roteiro: Michaela Coel
Elenco: Michaela Coel, Paapa Essiedu, Weruche Opia, Adam James, Aml Ameen, Ann Akin, Chin Nyenwe, Franc Ashma, Susy Henny, Harriet Webb, Karan Gill, Lara Rossi, Lewis Reeves, Marouane Zotti, Natalie Walter, Stephen Wight
Disponível: HBO Go
Foto de capa: Divulgação/HBO.
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Formada em Jornalismo e com especialização em mídias digitais, a baiana tem dedicado sua carreira ao mercado audiovisual há oito anos, quando iniciou na área. Já atuou como produtora executiva em obras para a televisão e em diversas funções dentro da produção de uma obra. Apaixonada por filmes e séries, se considera uma viciada que assiste mais de seis obras por semana.