Eu deveria ter o direito de viver pensando unicamente em minhas questões “subjetivas” como mulher, mas eu não consigo, eu não posso. Enquanto mais um homem negro é espancado até a morte, enquanto mais uma criança negra, um menino negro, cai de um prédio por negligência de uma pessoa branca, eu terei um problema que fere a mim e fere também aos meus irmãos, meus filhos e às demais pessoas pretas que me cercam.
A solidão e o extermínio estão direcionados para todas as pessoas pretas. Sou uma mulher preta, uma mulher coletiva e diante das desigualdades raciais postas, não há “empoderamento feminino” sem o fortalecimento racial de todas as pessoas pretas. Seremos nós, enquanto povo, ou não seremos força alguma. Me aproximar do Mulherismo Afrikana tem me feito compreender essa realidade.
Em uma sociedade, que tem o genocídio da população preta como projeto do racismo estrutural, repensar maneiras de reconstruções estruturais em conjunto parece o mais coerente possível. Em nossos escritos e falas sobre fortalecimento das pessoas negras, muito se trata sobre ancestralidade e respeito ancestral. Se nossas vidas se tornam ainda mais sagradas para nós ao percebermos todo percurso vivido por pessoas pretas antes mesmo dos processos da diáspora, não só de resistência, mas de criação, não seriam essas as pessoas que devíamos nos espelhar?
Nossas vidas não só vidas, é muito mais que estar nesse mundo. Contrariar as estatísticas de genocídio é uma batalha e nós sabemos e sentimos essa realidade todos os dias. Ninguém conseguirá fazer essa compreensão tão bem quanto nós mesmas (os/es). É a partir disso que podemos considerar a importância de nos distanciarmos de idealizações ocidentais eurocentradas e nos cercarmos daquilo que não nos deixa esquecer da importância de nossas vidas: ideias e práticas cotidianas pensadas e repensadas por nós e para nós, pessoas pretas que se localizam mentalmente em Áfrika.
A partir do momento que nós, mulheres pretas, nos enxergamos como possuidoras de uma ancestralidade matriarcal e afrikana, não buscaremos transformações baseadas em ideias que não contemplam nossas realidades. A partir do momento que nós, mulheres pretas, nos enxergamos como possuidoras de uma ancestralidade matriarcal e afrikana, entenderemos que somos mulheres que gerenciam vidas, que se movimentam coletivamente, pois o nosso bem-estar é o bem-estar de nossas comunidades e vice-versa. São mulheres pretas como agentes e não como salvadoras.
Entendido como paradigma e rompendo com qualquer ideal ocidental, o Mulherismo Afrikana foi cunhado em 1987 pela Dr. Cleonora Hudson (75 anos), como forma de compreensão de mundo que envolve e busca unificar todas as pessoas pretas afrikanas e em diáspora. Tendo como base o pan-africanismo, a afrocentricidade e o matriarcado, parte da visão de que mulheres pretas em Áfrika e em diáspora são mulheres afrikanas que enfrentam os problemas raciais criados pela colonização e escravização. Problemas que afetam todas as pessoas pretas enquanto povo.
E se há um problema racial criado contra um povo, a melhor forma de combatê-lo nada mais é do que o fortalecimento deste povo em conjunto. O Mulhersimo Afrikana foi cunhado por Hudson a partir de suas pesquisas que demostraram, de modo histórico, o matriarcado como marca da vida cotidiana de mulheres afrikanas, matriarcas em agência de suas comunidades. Mulheres que não só constroem coletivamente, mas são a própria comunidade, pois há total ligação entre ambos.
Outras estudiosas são referências ao trazerem as perspectivas do Mulherismo, como Ama Mazama, Nah Dove, Marimba Ani, Katiúscia Ribeiro, Aza Njeri, dentre outras. E ficam como referência para nossas leituras, reflexões e práticas diárias. Não há formas práticas de organização sem a organização mental, cultural e política. Sem as construções epistemológicas feitas a partir dessas reflexões.
O Mulherismo precisa ser entendido não como uma ameaça entre pessoas pretas, entre mulheres pretas que seguem perspectivas distintas, mas como uma nova possibilidade dessas mulheres se verem como mulheres pretas pertencentes a um grupo maior. Seguir com novas perspectivas que dêem conta, de fato, de uma realidade social, que é cruel. Os problemas estruturais das violências vividas por mulheres pretas permanecem, as marcas do colonialismo ainda nos atravessam.
Nossa existência não fará sentido enquanto estivermos em uma sociedade que extermina massivamente e tem como alvo pessoas pretas que estão em diferentes papeis sociais. Ser uma pessoa preta tem sido o alvo, é o alvo.
Foto de capa: Cottonbro/Pexels.
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Cientista social e mestra em Sociologia, ambos pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). Cursa o Doutorado em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Tem como experiência principal as pesquisas voltadas para as relações étnico-raciais, com foco em Educações antirracistas, Descolonização epistêmica e Afrocentricidade.