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10 anos da Lei de Cotas: caminhos para uma sociedade equânime

Já parou para pensar no dever que o Estado tem de reparar o escravismo criminoso cometido contra os nossos ancestrais? Escravismo esse que retirou em massa uma população que tinha sua própria cultura, seus costumes, sua liberdade e sua autonomia para servir como mão de obra da fundação de um país.

É inegável a herança sangrenta deixada por esse regime que durou meio século e ainda hoje tem seu alvo apontado para as peles escuras. Por isso, é urgente a discussão sobre o que fazer para reparar toda essa devastação.

Nesse mês de agosto completou-se 10 anos que uma das medidas de ação afirmativa foi homologada. A Lei de Cotas nº 12.711/2012 destina 50% das vagas em universidades públicas para a população menos favorecida, incluindo estudantes negros, pardos e indígenas, desde que sejam oriundos de escola pública.

Vamos dar uma contextualizada para entender de onde vem e porque nós, enquanto sujeitos negros, merecemos essa conquista.

Introdução da população negra na escolaridade

Segundo o livro Cota não é esmola: as cotas raciais da UECE do pedagogo Davison S. Souza, a primeira vez que introduziram o sujeito negro como aprendiz de algo, ainda em condição de escravizados, foi no século XVI com a vinda dos jesuítas, chefiados pelo padre Manoel da Nóbrega (1517-1570).

O livro “Cota não é esmola: cotas raciais na UECE”, lançado neste ano. Foto: Divulgação.

Ele tinha o intuito de converter os povos indígenas e negros, ambos considerados sem cultura, alma, religião e identidade. É possível identificar a Igreja Católica como importante disseminadora da desumanização dos povos não-brancos, também tendo papel principal em sua colonização e genocídio.

A educação jesuítica durou mais de dois séculos e seu resultado manteve a população negra e indígena na subalternidade; assim como a vinda da Constituição de 1824, que declarou que todos os cidadãos tinham o direito à educação primária e pública. O que, infelizmente, não era o caso das pessoas em condição de escravizadas, já que não eram vistas como sujeitos de cidadania.

O padre jesuíta Manoel da Nóbrega (1517-1570). Foto: Reprodução.

Apenas em 1871 foi homologada a Lei do Ventre Livre, que previa que crianças nascidas a partir daquela data fossem entregues ao Estado para que fossem educadas. Mas também podemos identificar como essa educação era para conservar o status quo; já que não dava recursos ou autonomia para o sujeito negro, apenas alienação com intuito de qualificar sua mão de obra que vinha sendo demandada pelo sistema capitalista.

Como o Estado nunca se preocupou com a responsabilidade da instrução da população negra, as organizações de cunho educacional, cultural e político desenvolveram-se de negros para negros.

Militantes da Frente Negra Brasileira em uma delegação da entidade. Foto: Reprodução.

Foi o caso da Frente Negra Brasileira, instituída em 1931, sendo a primeira organização negra do país e a que iniciou o debate sobre a educação dos afrodescendentes no Brasil. Eles depositavam na possibilidade educacional a principal ferramenta de combate ao racismo. A organização teve fim em 1937, dissolvida pelo então presidente (e ditador) Getúlio Vargas (1882-1954), estimulador da educação eugênica.

Por meio da formação técnica e política, o Teatro Experimental do Negro possibilitou que pessoas negras de outras profissões também pudessem exercer a vida nos palcos. Foto: Divulgação/Adeloyá Magnoni.

Ainda na Era Vargas, o economista, multiartista e articulador social Abdias do Nascimento (1914-2011) resistia com o Teatro Experimental do Negro, projeto político-pedagógico que articulava a emancipação e empoderamento negro durante essa ditadura. Vale ressaltar que o mito da “Democracia racial” foi disseminado nessa época, consolidando uma falácia de que no Brasil todos são iguais.

E se todos são iguais, o que justificaria os dados levantados pela professora Sueli Carneiro (2011), que mostram que “em 1977 assinalavam que a taxa de analfabetismo da população negra maior de 15 anos era de 20,8% e da população branca de 8,4%”? Essa discrepância é a herança deixada pela escravidão no Brasil (1535-1888).

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Cotas raciais e Cotas sociais

O debate racial sempre foi levantado pelos movimentos negros, ainda que não oficializado. Com várias mudanças no sistema educacional e nenhuma promovendo educação antirracista e anticolonial, foi apenas em 1990 que as ideias de ações afirmativas e reparadoras entraram na agenda do governo brasileiro.  

Apenas em 1998, mais de cinco séculos depois da abolição, foi fundada a primeira organização pública com a finalidade de se preocupar com a causa racial existente no Brasil, a Fundação Cultural Palmares. Outro mérito das reinvindicações do movimento negro foi que, durante a década, organizaram ações históricas, como a Marcha Zumbi dos Palmares Contra o Racismo, em 1995, finalmente chamando atenção para a pauta.

Marcha Zumbi dos Palmares de 1995. Foto: Geledés/Historiadores Negros.

E então, em 2003, a Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro implementa o primeiro programa de cotas do Brasil; que reservava metade das vagas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) para os sujeitos autodeclarados negros. Apesar das argumentações contra a ação; em 2010, já haviam 83 instituições de ensino superior adeptas às cotas raciais.

Escancarando mais uma vez a lentidão do Estado para as urgências das populações não-brancas – resultado da branquitude plena no poder -, a Lei de Cotas nº 12.711 só foi homologada mais nove anos depois, em 29 de agosto de 2012. E dispõe de 50% das vagas em universidades públicas e institutos federais de educação para educandos oriundos de escola pública que sejam negros, pardos e indígenas.

“A ideia era ter cotas raciais, no entanto, houve um tensionamento para que o Movimento Negro pudesse acolher as cotas sociais”, conta Cristiane Sousa, 40, professora e coordenadora da Coordenadoria de Relações Étnico Raciais do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE). Pois, tendo em vista que as cotas são uma ação afirmativa que também tem cunho de reparação histórica, e foram conquistadas pelas diversas reivindicações dos próprios negros, apenas o pacto da branquitude para garantir que os brancos também tivessem direito a esse novo “privilégio”. 

Ressaltando que a população negra não possui privilégio algum e mais uma vez a população branca sai na frente, a professora Cristiane acrescenta. “Diante disso eu beneficio muito mais o branco pobre do que o negro pobre, porque quando eu atrelo a questão racial com a questão econômica, eu tô dizendo que aquela situação é essa [econômica] quando a questão é prioritariamente racial”. 

Racializar todas as questões é sempre necessário para identificarmos qualquer desvio de conduta de caráter racista. Não podemos esquecer que o racismo é um projeto político que perpassa todas as esferas da sociedade e visa, acima de tudo, manter essa estrutura hierarquizada de brancos no topo e todo o restante abaixo. 

A partir disso podemos discorrer sobre as oportunidades que um branco, ainda que pobre, ao sair da favela e ir para a faculdade – pelo sistema de cotas – tem quando comparado com um negro. Quem vai ser mais acolhido no mercado de trabalho? Quem é o corpo que predomina os espaços de poder? Essa pessoa branca, fora da favela, ainda trafega facilmente pelo topo da hierarquia. Enquanto uma delegada negra é constrangida em loja de departamento. 

Lilica Santos, 23, é estudante de Ciências Sociais pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e produtora cultural, e reflete sobre os índices de maior pobreza e baixa escolaridade que é ocupado pela população negra. “Muitas vezes é pela nossa trajetória, pelo nosso lugar na sociedade que tira da gente uma educação de qualidade e nos coloca num lugar muito inferior quando você vai pensar a disputa. E não que nós não tenhamos inteligência ou capacidade, mas de que as oportunidades não são as mesmas”. Assim desmistificando a falácia da meritocracia.

E não há outro caminho para conseguir equidade de oportunidades do que ocupar os ambientes, principalmente os acadêmicos. Sobre isso, a professora Cristiane declara. “Nossa defesa é pedagógica e educativa. As pessoas precisam se educar e reeducar para as questões étnico-raciais”.

Lilica Santos, a promotora Lívia Sant’Anna Vaz e a professora Cristiane Sousa no I Seminário de Formação sobre Políticas Afirmativas e Cotas Raciais: o papel das bancas de heteroidentificação. Foto: Divulgação.

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Construção identitária do povo negro

Reconhecendo o racismo como uma ferramenta para subjugar os não-brancos, podemos identificar como ele age covardemente desde a escola. Isso quando deturpam a história do “descobrimento” do Brasil, colocando coronéis escravocratas como heróis e não apresentando nenhuma das diversas referências positivas da negritude para as crianças pretas.

A professora Cristiane pontua. “O racismo é estrutural e estruturante, desde criança a gente não quer ser essa pessoa negra, porque diante desse silêncio ruidoso, desse engrandecimento à Europa, será que só a Europa produz conhecimento?”. Ela indaga sobre a educação eurocêntrica e continua. “Não é possível um continente como a África, com 54 países, não produzir conhecimento, não ter heróis, é impossível… não existe! No entanto, nunca colocam a África como principal produtor de conhecimento”.

Devido a isso, temos uma população negra que se reconhece e se racializa tardiamente; sofrendo na infância e adolescência com apelidos pejorativos, exclusão e tratamento diferenciado de todas as crianças brancas e de cabelo liso. Essa criança negra só vai se identificar e entender o porquê de ter sofrido tanto em sua fase adulta, como Lilica conta sobre seu processo de racialização. “Quando eu entro na universidade e começo a perceber que eu sou um perfil totalmente diferente”.

Ela também relata sobre sua trajetória acadêmica, marcada pelo silenciamento. “Quando os estudantes brancos da turma falavam era ok, mas quando eu falava o meu modo de compreender as leituras, era sempre questionada de uma maneira muito violenta”. E completa. “Foi na universidade que eu mais senti como eu era uma pessoa negra porque lá eu era constantemente provocada pra esse lugar”. Os brancos sempre sabem quem é negro, ainda que nós nos confudamos. 

Entretanto, Lilica ressalta o impacto positivo de ter ingressado pelas cotas. “Eu percebi a diferença que eu fiz, que foi o meu corpo tá lá dentro, o meu conhecimento tá lá dentro”. Sou uma pessoa que está usufruindo de uma política e mostrando que ela funciona”.

 “Sinto orgulho de fazer parte de uma geração que tem pela primeira vez os direitos garantidos, de ingressar numa instituição superior”, diz Lilica Santos. Foto: Divulgação.

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Políticas de Promoção da Igualdade Racial

“O racismo não é uma construção de negros, é uma construção da branquitude”. É o que diz a professora Cristiane. E o Estado, como criador desse sistema, tem como obrigação articular medidas para extinguí-lo, visando a equidade racial. Diante disso, devemos observar as políticas que foram implantadas para garantir nossos direitos.

As políticas valorativas são referidas na Lei nº 10.639/03, que é sobre a valorização e obrigatoriedade da história e cultura afro-brasileira nos espaços de educação básica e superior. Para a professora Cristiane, a representação étnica no ensino é o caminho para a construção identitária

As políticas repressivas são as leis que criminalizam o racismo, como a nº 7.716/89, criada mas não devidamente aplicada, pois vemos todos os dias racistas saírem impunes. “Quantas pessoas hoje são presas por causa do racismo? Negam a existência e dizem que é injúria racial, minimizando uma violência para não prender o branco, ficamos diante do pacto narcísico da branquitude”, questiona a educadora.

As políticas afirmativas juntam as duas últimas, pois é o resultado da aplicação dessas ações. É também de caráter temporário, como a Lei de Cotas, direcionada ao grupo étnico discriminado, pensando não apenas no ingresso, mas na permanência desse público nas instituições.

Hoje, a principal ameaça que esses direitos conquistados sofrem é devido ao medo da perda de espaço de poder do povo branco. Então, a banca de heteroidentificação tem que lidar com as fraudes por afroconveniência, a “onda negra, medo branco” (Célia Azevedo, 1987), mas “nunca tenha medo do seu inimigo quando não é você que começa a brigar” (Originais do Samba, 1971).

E os efeitos?

Os impactos gradativos são notórios, desde a implementação da Lei de Cotas o número de ingressantes negros nas universidades dobrou, podendo chegar aos concursos públicos por outra política afirmativa, a Lei 12.990/14, e finalizando com Lilica: “É nesse lugar que a Lei de Cotas impulsiona e promove a equidade racial, agindo diretamente na redistribuição de renda”.

Podemos concluir que o caminho para uma sociedade equânime se dá por meio da implementação e fiscalização dessas ações políticas. O que garante ao sujeito negro a oportunidade de adentrar aos espaços de poder, por meio da educação antirracista desde o ensino básico, passando pelo ingresso nas universidades de concursos pelas cotas e obtendo acompanhamento antes, durante e depois da jornada no mercado de trabalho. 

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Citando o antropólogo e professor Kabenguele Munanga (2010), “o racismo é um crime perfeito no Brasil, porque quem o comete acha que a culpa está na própria vítima, além do mais destrói a consciência dos cidadãos brasileiros sobre a questão racial”.

Finalizando com as palavras da professora Cristiane: “Por que a gente precisa de cota? para poder oportunizar o povo negro a estar nos espaços de poder, tornar a universidade equânime e para diminuir a desigualdade racial e social”. 

Glossário

Status quo: é uma expressão do latim que significa “estado atual”.
Educação eugênica: o estudo dos agentes sob o controle social que podem melhorar ou empobrecer as qualidades raciais das futuras gerações seja física ou mentalmente.
Democracia racial: conceito que nega a existência de racismo no Brasil.
Pacto da branquitude: conceito que expressa a empatia entre brancos e como sempre estão a defender seus privilégios.
Racializar: atribuir identidades raciais ou étnicas a um relacionamento, prática social, grupo ou situação.
Meritocracia: sistema social que prega que se deve conseguir algo baseado no esforço pessoal.
Silêncio ruidoso: expressão utilizada por Eliane Cavalleiro para falar sobre a quietude quanto às relações etnico-raciais.
Educação eurocêntrica: a ideia de que a Europa é o centro da cultura mundial.
Afroconveniência: se apropriar da cultura negra ou se autodeclarar negro para se beneficiar por exemplo, das cotas.

Foto de capa: Divulgação/Defensoria Pública do Ceará.

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Ouça o episódio #01 do Saúde Preta podcast – Por que falar sobre saúde da população negra?

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