Nos últimos anos, temas sobre masculinidades e masculinidades negras têm ganhado corpo na sociedade. Neste sentido, algumas reflexões e problematizações têm sido feitas a partir da música, do teatro, de conteúdos para redes sociais, da dança, de artigos acadêmicos, de grupos para homens e etc. Diante desse fervor sobre o tema, eu tenho percebido que algumas linhas de discussão sobre masculinidades são problemáticas e acabam distorcendo, empobrecendo e individualizando questões complexas e profundas.
Neste texto, tenho o objetivo de elencar algumas abordagens sobre masculinidades e masculinidades negras que acho problemáticas e perigosas. Isso não quer dizer que automaticamente eu me torne o grande homem que tudo sabe e que tem a melhor abordagem. Pode ser inclusive que tenha vacilado em alguns textos meus, inclusive, eles são passíveis de críticas também e está tudo certo. Mas agora vamos para as tais abordagens que considero problemáticas:
Abordagem sobre masculinidades não racializada
Quando se fala sobre o que é ser um homem no Brasil, ou quais questões envolve essa construção, é necessário dizer de quais homens estamos falando, pois, questões como violência, opressão, sexualidade, saúde e empregabilidade, são atravessados de forma diferente aos diversos grupos masculinos. Quando pensamos sobre homens negros, por exemplo, precisamos compreender que o racismo enquanto estrutura, atravessará essa vivência masculina de forma completamente diferente em relação ao homem branco.
Quando pensamos em homens trans, assexuais, gays e bissexuais, também será uma outra vivência, e assim precisamos olhar as masculinidades a partir da sua pluralidade e com a sensibilidade analítica da interseccionalidade (conceito que a intelectual negra soteropolitana Carla Akotirene trata de forma incrível no seu livro “O que é interseccionalidade?”).
Lembro que recentemente estive nos bastidores de uma live organizada pelo projeto “Passando a visão” (do qual faço parte junto a Roberto e Poeta com P de Preto), e o tema era masculinidades negras e produção cultural. O convidado da live foi Kuma França, que é um homem preto trans, artista, escritor e produtor cultural. Durante sua fala, eu fui percebendo vivências parecidas por ser um homem preto, porém, também percebi que tinham reflexões e vivências sobre as transmasculinidades que eu não conhecia e que eram distantes da minha vivência.
Inclusive, se atualmente eu me identifico como um homem cis, foi por conta de Kuma França, que antes de começar a live pediu para que todas as pessoas envolvidas na live se apresentassem enquanto homem ou mulher cis, pois quando não se faz a caracterização da identidade cis, além de inviabilizar outras identidade (não binaria, trans e etc), ela acaba sendo naturalizada e adotada enquanto norma.
Quando não há racialização sobre o tema das masculinidades ou não se utiliza da sensibilidade analítica das interseccionalidades para tratar sobre o assunto, ele acaba se tornando pobre e superficial. É como se as pessoas ficassem presas no discurso que homens podem broxar, sendo que mais de mil homens precisam amputar o pênis todos os anos devido ao câncer de pênis. Nesse caso, os especialistas dizem que a falta de higiene no órgão pode provocar o câncer e que a doença geralmente acomete homens de regiões rurais e com pouca escolaridade (imagino que essas regiões também tenham dificuldades no acesso à saúde pública), e eu nem preciso dizer qual a cor desses homens.
Abordagem individualista sobre masculinidades
É interessante que dentro dessa abordagem, o homem é sempre visto de forma monstruosa e machista, porém, quem está criando o conteúdo, compondo a música, escrevendo o artigo ou atuando artisticamente, nunca é esse homem mau. É como se existisse um ser de luz masculino, que identifica o machismo em todos os outros homens, inclusive, ele é mais feminista do que as mulheres. O foco do conteúdo, em sua grande maioria, é relacionado aos comportamentos machistas, de como se deve tratar as mulheres, de como somos violentos, das atitudes deploráveis de algum homem e por aí vai.
Esse tipo de conteúdo acaba individualizando questões que devem ser tratadas também a partir da estrutura social. Não tem como falar sobre a violência masculina, se a gente não compreender a cultura machista e a lógica do patriarcado; não tem como falar sobre masculinidade negras sem compreender que existe uma estrutura racista e genocida que nos mata de diversas formas.
Quando falo sobre masculinidades negras, é sobre a nossa sobrevivência enquanto povo negro; é para que possamos ter o direito a vida; é para que se possa construir um olhar de cuidado aos nossos amigos, companheira (s), companheiro (s) e comunidade; é para que possamos construir políticas públicas que compreendam as nossas demandas enquanto homens negros plurais. Refletir e atuar sobre os temas das masculinidades, não é só lutar pelo direito de broxar, usar maquiagem e ser sensível, mas também lutar pela nossa sobrevivência em um país que quer nos ver morto.
Abordagem sobre masculinidades para as mulheres
É possível perceber dentro dessa abordagem (muito vista nas redes sociais) que a ideia de quem está produzindo conteúdo é ser uma espécie de coaching feminino. A mensagem transmitida é que, por ser um homem “desconstruído” e atento a todas as formas de machismo, ele sabe identificar os discursos e comportamentos machistas. Sendo assim, esse homem é a pessoa certa para te dar dicas de como encontrar o homem perfeito. Muitas vezes, esse criador de conteúdo abre uma caixa de perguntas nos stories querendo saber as dúvidas sobre os relacionamentos com os homens, pois ele, o iluminado, vai te responder.
Perguntas do tipo, “Meu namorado não deixa eu olhar o celular dele, será que ele está me traindo?” são respondidas de forma pasteurizada, baseadas nas vozes da cabeça e pensadas para que a resposta seja exatamente o que a pessoa quer ouvir, colocando novamente esses outros homens no lugar de monstro. Esse tipo de abordagem sobre as masculinidades também empobrece o tema, pois desconsidera a pluralidade de ser homem, não traz aspectos estruturais para o debate, foca o tema das masculinidades apenas nos relacionamentos amorosos heterossexuais e vende uma cura masculina milagrosa que não existe.
Muitas vezes essa abordagem também acaba se aproveitando das diversas frustrações amorosas que as mulheres já tiveram com homens para reforçar um lugar de culpa e monetizar em cima da vulnerabilidade. Eu já vi paginas de masculinidades vendendo a ideia de que a mulher é que tem o dedo podre, que não sabe escolher homem direito, que está se relacionando com homem de forma errada e que, por isso, ele está ali para ajudar com um curso ou consultoria.
Abordagem sobre masculinidades “5 passos para ser um homem desconstruído e se livrar do machismo”
Essa abordagem parece com todas as outras descritas aqui, ela é pautada no individualismo, tem uma base coaching e não é racializada, pois é pensada a partir do homem universal (branco, hétero, cis e cristão). O seu conteúdo geralmente é voltado para a criação de receitas e fórmulas milagrosas que levarão o homem machista à sua desconstrução. Esse tipo de postagem, apesar de tosca, acaba sendo atrativa, pois muitas pessoas querem resolver problemas complexos de formas simples.
Eu confesso que detesto qualquer conteúdo que tenham passos para seguir. Dentro da minha área profissional, que é a psicologia, tremo quando vejo um post “5 maneiras/dicas/passos de lidar com a ansiedade”. É a tal psicologia Fast Food, termo cunhado pelo meu amigo psicólogo Deivison Miranda.
Apesar de mostrar exemplos de campos diferentes, a ideia é a mesma: criar uma autoridade no assunto (“sei tanto do assunto que posso te dizer como você pode fazer para chegar aonde quer, independente de quem você seja”), apresentar caminhos universais e práticos para uma questão complexa e individualizar um tema que é também coletivo e estrutural.
Se alguém tem 5 passos para o outro não ser mais machista, para que a pessoa vai querer se responsabilizar pelos seus atos, observar seus comportamentos, buscar terapêuticas e rever muita coisa que aprendeu até agora sobre o que é ser homem? Infelizmente somos levados a escolher o caminho mais curto, pois são tantas questões para dar conta que os cinco passos acabam sendo convidativos.
Abordagem sobre masculinidades a partir do homem espiritualizado
Esse é o tipo de abordagem que talvez me incomode mais, pois é a fusão da abordagem sobre masculinidade não racializada com a individualizada. Geralmente, o foco do tema está relacionado ao ser profundo e espiritual do homem, são homens bancos que usam saia, têm o cabelo e barba grandes, usam coque samurai e propõem vivências sobre o equilíbrio e a cura da energia masculina.
Eu não tenho nada contra pensar sobre masculinidades a partir da espiritualidade. A grande questão é que, muitas vezes, as reflexões e vivências só ficam na espiritualidade. Geralmente, questões estruturais e coletivas não são pautadas, não há a leitura sobre a diversidade masculina, por isso o discurso fica cristalizado na ideia de que a cura está em cada um. Ou seja, não importa que em 2021, durante a pandemia, oito mulheres foram agredidas a cada minuto, pois a atenção está em cada homem curar o seu masculino (Visível e Invisível: A Vitimização de Mulheres no Brasil – 3ª edição – 2021). Neste caso, o masculino é curado de forma individual e a partir da energia masculina.
Já que a energia masculina não tem cor, a racialização se perde nas energias cósmicas, e a responsabilidade enquanto homem em relação à violência contra as mulheres, por exemplo, não existe. Se eu não bato na minha mulher, não preciso me responsabilizar pelos problemas sociais, pois eu enquanto indivíduo estou curado. Lembro que em algum momento da minha navegação pelo Instagram, me deparei com vivência para a cura do masculino, fui dar uma olhada por curiosidade, e o curso custava R$ 520,00 aproximadamente. Lembro que na hora me assustei e questionei “De que masculinidade “curada” o idealizador do curso está falando?” Acho essa questão bem problemática.
Conclusão
É preciso estar atente sobre as formas em que as pautas são abordadas. Estamos vendo mais do que nunca as nossas pautas sendo apropriadas, empobrecidas e distorcidas pela branquitude. Por isso, é necessário estarmos unides e bem embasades de conhecimentos para que possamos perceber as armadilhas plantadas pela colonialidade.
A sociedade está cheia de armadilhas e, às vezes, nos colocam nesse lugar de token negro, nos oferecem migalhas em troca de uma falsa política de diversidade e empobrecendo pautas importantes, a exemplo das masculinidades e masculinidades negras. Lembremos: a mesma pessoa branca que bate palma para o seu trabalho e te chama para fazer lives super engajadas, pode ser a que vai pedir sua cabeça por um erro que você cometeu.
Para nós, enquanto pretes, o erro nunca foi permitido. Infelizmente aprendi isso um pouco tarde. Nosso erro causa cancelamento e lucro para eles, já o erro deles é naturalizado, até porque errar é humano.
Referências
Falta de higiene no pênis é coisa séria e pode causar amputação do órgão – https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao/2017/10/31/falta-de-higiene-no-pinto-e-coisa-seria-e-pode-causar-amputacao-do-orgao.htm?cmpid=copiaecola
Mapa da violência 2016|Homicídios por arma de fogo no Brasil – https://flacso.org.br/files/2016/08/Mapa2016_armas_web-1.pdf
Visível e Invisível: A Vitimização de Mulheres no Brasil – 3ª edição – 2021 – https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2021/06/infografico-visivel-e-invisivel-3ed-2021-v3-3.pdf
Foto de capa: Pexels/Anna Shvets.
LEIA TAMBÉM: Conheça o Blackoob, um clube de leituras pretas
Ouça o episódio #01 do Saúde Preta podcast – Por que falar sobre saúde da população negra?
Apoie a mídia negra nordestina: Financie o Negrê aqui!
Psicólogo e Especialista em Saúde Mental e Atenção Básica pela Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública (EBMSP). É pós-graduado na especialização em Direito Humanos, Saúde e Racismos pela Fiocruz. Homem cis preto de Salvador (BA) que gosta de compor histórias e sentimentos. Já atuou profissionalmente na política de assistência social junto à população em situação de rua, na área da saúde mental, clínica psicológica e garantia dos direitos da criança e adolescente em contexto de vulnerabilidade. Escreve e se interessa por temas relacionados à saúde mental da população negra, masculinidades negras, relações não-monogâmicas, relações raciais e política.