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Sobre socialização do homem negro, masculinidades e pacto de silêncio

Há pouco tempo, comecei a refletir sobre a socialização de nós homens negros durante nossa trajetória de vida e comecei a lembrar da minha infância e adolescência. Levando em consideração que suas experiências podem se assemelhar à minha, trarei algumas situações sobre minha socialização enquanto homem negro. 

Infância

Neste período, meu contexto social trazia toda uma lógica de que os meninos precisariam jogar futebol/fazer esportes ou lutar alguma arte marcial. Na época, eu fazia karatê e jogava futebol, gostava das práticas, mas confesso que colocar o CD de É o Tchan e dançar no quarto fazia mais sentido pra mim.

Algumas danças ainda tinham uma carga voltada à feminilidade, já que a coreografia demandava mexer a cintura, os quadris e rebolar a bunda. Desta forma, não só algumas danças, mas quaisquer atividades que envolvesse o balanço do corpo, sensibilidade, cuidado e carinho eram associadas à feminilidade e, enquanto homens, não queríamos nos aproximar de nada vinculado ao ser mulher.

Por isso, geralmente escolhíamos atividades voltadas à resistência física, força, disputa, contato, violência, competição e dominação. Aprendemos que precisamos ser durões, ser machos e fugir de qualquer comportamento feminino, e não é por acaso. Naquela época eu ainda não entendia, mas a ideia de feminilidade sempre esteve ligada à fragilidade, submissão, fraqueza e frescura.

A dicotomia masculino x feminino sempre esteve relacionada a relações de poder, pois é assim que se é construída a ideia de superioridade masculina. Por mais que percebesse essa diferenciação entre homens e mulheres, lembro de achar na dança e na atuação maiores possibilidades de me expressar e entrar em contato comigo mesmo.

Adolescência

Foi aqui que a lógica se perpetuou na dinâmica heteronormativa, e as disputas começaram a se relacionar ao poder de conquistar as mulheres. E aí vem as conversas de quem “pega” mais (nunca gostei do termo por remeter a objetos, pegar um prato, uma colher e etc), de quem já transou, de disputar as mulheres, de contar vantagens e conversar sobre suas certezas para mostrar que são melhores que a do outro colega.

Falo sobre certezas porque enquanto homens, somos exigidos neste lugar, pois precisamos nos afirmar enquanto pessoas com certezas e seguranças. A possibilidade da dúvida era vista como insegurança, como se não soubéssemos algo que já deveríamos saber.

Lembro de não compreender como era feito o sexo, tinha acesso a algumas revistas e filmes pornôs, mas não entendia muito bem esse universo. Eu nunca perguntei a ninguém como era o sexo e o que representava esse ato, achava que a desinformação que tinha adquirido (revistas e indústria pornô) junto a alguns experiências compartilhadas por amigos, que já tinham iniciado a vida sexual, bastassem. 

Foto: Pexels.

Não encontrava espaço para falar sobre minhas inseguranças, acreditava que só eu deveria senti-las, pois todo mundo parecia tão seguro de si, com tantas histórias sexuais. Eu, mesmo que timidamente, sustentava as mentiras das transas e amores que nunca aconteceram, tudo isso para me sentir aceito no grupo, mesmo que isso custasse o meu esvaziamento subjetivo.

Chegava a aceitar as afirmações e piadas feitas sobre o meu pênis. Na época acreditava que o discurso de que homens negros possuíam membros gigantescos era uma “vantagem”, e eu nem tinha. Sentia a pressão da hiperssexualização do meu corpo, do que esperavam sexualmente de um homem negro e não consegui ver em mim a virilidade, o domínio sexual e todo esse fogo que esperavam de mim.

Me recordo de ter fugido de ambientes em que poderia acontecer um ato sexual, quando percebia que o clima estava esquentando, dava um jeito de sair do local inventando qualquer desculpa que viesse à minha cabeça.

Esse movimento era perverso comigo, vinha de uma enorme insegurança de não atingir as expectativas criadas sobre o meu desempenho sexual enquanto homem negro. Quando olhava ao meu redor, não me sentia seguro para compartilhar com nenhum amigo os conflitos e inseguranças que estavam me consumindo naquele momento. 

Caminhos possíveis

Durante meu processo de sociabilidade pautada em uma masculinidade violenta, acumulei parceiros de festas, de contar vantagem e de “zoação”, mas guardei todas as angústias de ser homem preto no mundo.

Analisando todo esse processo do passado, faço algumas perguntas que ecoam sempre na minha cabeça: Qual construção de amizade eu quero ter com meus amigos? Eu me sinto confortável em falar sobre minhas dores e angústias? Eu abro espaço para que eles possam ser escutados? Como me sinto entre meus amigos? Qual tipo de afeto e cuidado estamos construindo?

Talvez eu não tenha respostas para todas as perguntas, mas sei que elas me motivam a construir outras formas de afeto enquanto homem preto. E quais formas são essas? Ainda não sei ao certo, mas realizar atividades que me conectam com meus sentimentos também tem sido de grande ajuda.

Tocar violão, compor e fazer terapia têm construído novos olhares sobre mim e me motivado a compartilhar isso com outros homens. Não tem sido fácil, mas sinto que é possível, e vejo enquanto necessidade a quebra desse pacto de silêncio para que possamos construir amizades potentes, acolhedoras e que humanizem nossos corpos.

Foto de capa: Joshua Mcknight/Pexels.

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