Quando este artigo for publicado já terão se passado o primeiro turno das eleições municipais no Brasil, e espero que tenhamos conseguido eleger algumas boas candidaturas e que estejamos comemorando pequenas grandes vitórias. Espero também que sigamos ampliando os debates sobre cidade, sobre a importância do poder local, nos questionando se realmente queremos nossas pequenas e médias cidades cada vez mais semelhantes aos grandes centros urbanos. Afinal, o que estamos usando como referenciais para construção de cidades? A partir de que narrativas tem sido feito o planejamento urbano?
Ao longo das eleições, podemos ver um show de horrores. Candidatos vendem mega obras como soluções para problemas urbanos, mas túneis e viadutos resolverão integralmente os problemas de mobilidade? Mais prédios altos resolverão os problemas de déficit habitacional? Não vejo nesses exemplos nenhuma solução.
Sair de casa tem pessoalmente me deixado angustiada às vezes. Mesmo com todos os problemas urbanos, eu gosto de estar na rua. Apesar dos pesares, é na rua que a gente se encontra. Mas quando olhamos em volta, são muitos e crescentes os negacionismos, não é?
A negação tem sido estratégia política há muito tempo. Ao negar a realidade pandêmica do Covid-19, por exemplo, o município se afasta de suas responsabilidades. Se não há vírus nem pandemia, também não há problema a ser resolvido nesse caso. Enquanto isso, morrem aqueles que têm o direito à vida negado, quem não puder pagar ou quem não tiver sorte.
Sabendo que não dá para contar com a sorte, nem esperar que o Estado passe a cumprir com seu dever da noite para o dia, a população – especialmente os grupos marginalizados e periféricos da cidade – criam suas redes de apoio, desenvolvendo tecnologias da sobrevivência. São nessas inventividades do cotidiano e nas pessoas que as desenvolvem que eu deposito minha esperança em uma mudança de chave. É de onde, para mim, vem o acalento para a angústia.
Nesse sentido, independente de quantas vitórias tenhamos nessas eleições municipais, acredito que precisamos crescer e fortalecer o debate sobre o poder local.
“[…] o poder local tem papel crucial na reconstrução da democracia, pois é nesse nível que a população vivencia cotidianamente retrocessos e avanços na experiência urbana que são a expressão perceptível da sociedade como ela é.” (Rede BrCidades, 2020)
A experiência urbana não é a mesma para todas e todos. Teremos experiências diferentes de acordo com os espaços, posições e grupos que ocupamos e pertencemos na cidade. No entanto, o planejamento urbano, as políticas públicas e o Estado seguem operando a partir de uma ideia de experiência urbana única, a partir de uma história única (Adichie, 2019).
Chimamanda Ngozi Adichie em seu livro: “O Perigo de uma História única”, nos traz uma perspectiva que podemos aplicar à todas as relações de poder existentes, inclusive às relações de poder que materializam o planejamento urbano.
“Existe uma palavra em igbo na qual sempre penso quando considero as estruturas de poder no mundo: nkali. É um substantivo que, em tradução livre, quer dizer “ser maior do que outro”. Assim como o mundo econômico e político, as histórias também são definidas pelo princípio de nkali: como elas são contadas, quem as conta, quando são contadas e quantas são contadas depende muito de poder.” (Adichie, 2019).
Nossas cidades têm contado uma única história há muito tempo, pois o planejamento urbano tem sido feito a partir de uma única história, de uma única experiência de cidade que não contempla as diferenças e diversidade de sua população. Há séculos, a história contada é a daquela minoria quantitativa que detém o poder hegemônico.
Na minha opinião, o poder local tem extrema importância para essa virada de chave, porque a partir da escala local precisamos ouvir e contar outras e diversas histórias. No cotidiano, e fora dos espaços oficiais de planejamento urbano, essas contações de histórias têm acontecido. Diversos grupos e movimentos sociais, artísticos e culturais têm reivindicado escuta, espaço e território. E então encontramos uma outra semelhança com a experiência de Chimamanda Adichie em seu país de origem, Nigéria: “a incrível resiliência de um povo que prospera apesar do governo, e não graças a ele” (Adichie, 2019). A cidade só será plena para todas e todos quando o planejamento urbano incorporar e materializar outras histórias.
Referências
ADICHIE, Chimamanda Ngozi. O perigo de uma história única. 1ºed. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
SILVA, Beatriz Fleury et al. Membros da Rede BrCidades. O poder local tem papel crucial na reconstrução da democracia. Diplomatique, 2020. Edição 160. Disponível em: https://diplomatique.org.br/o-poder-local-tem-papel-crucial-na-reconstrucao-da-democracia/?fbclid=IwAR3RGSb9bD5ZpB5Q_yxnxM0holDGgGuEej0Xi0CgzXxx5t2z-9AUgEiQ_nM. Acesso em: 11 nov. 2020.
Foto de capa: Aleksejs Bergmanis/Pexels.
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