O medo do novo que nos corrói num estado de constante morte e violência nos impede de conhecer a si mesmo. Essa frase resume o que eu, enquanto comunicadora em formação pensei sobre a possibilidade que é vivenciar um aprendizado em uma turma de medicina. Cursar medicina estava em um daqueles horizontes limitantes que a gente estabelece para si mesmo com um “não tem nada haver comigo”, mas a ancestralidade tem lições maiores que nós para ensinar diariamente, então por pura intuição decidi ver qual era a ideia por trás do título espiritualidade e saúde.
O TCC se aproximando para mim, me apeguei a investigação de pensadoras negras que fossem alicerce para a pesquisa do autocuidado como um ato político, para uma população que historicamente foi marcada pela violência do colonialismo. Dias antes de começar a disciplina, estava lendo bell hooks, uma intelectual norte-americana, que em seu livro All about love (1992), defende o amor por si, como um ação revolucionária, contra a cultura patriarcal e colonialista, que se sustenta com uma política de morte e auto-ódio para a população preta pobre, e lucra com isso.
O interesse pela saúde e a necessidade de promover saúde para a comunidade me incentivou a desbravar a disciplina de Espiritualidade e Saúde, em um processo interseccional em que buscava minha cura interior de um processo de adoecimento. Em paralelo a isso, vivenciava a despedida lenta do momento terminal do câncer da minha avó de 82 anos, que só foi descoberto em estágio avançado. A busca pela conexão com meu eu interior se tornou urgente, o desequilíbrio não era uma opção.
O fechar dos olhos e permitir-me guiar pela voz do mestre e médico Adenildo Costeira, todas as tardes de quarta, se tornou um novo ritual no meio de um ciclo tão complexo existencial, interna e coletivamente, diante de um evento tão frágil como o da pandemia. A meditação, prática presente em todos os encontros, me trouxe pouco a pouco, consciência do meu ser, corpo e responsabilidade comigo mesma. Logo, com a minha comunidade também.
A primeira meditação é um misto de falta de concentração com medo de desbravar o novo. A espiritualidade sempre foi um refúgio para mim, porém os sintomas ansiosos do meu trabalho como publicitária, como um excessivo imediatismo, me impediam de meditar, de tomar conhecimento do meu organismo, respiração e afins, logo se concentrar e silenciar a mente era um muro entre eu, minha intuição e poder criativo.
A cada novo encontro a busca pelo meu eu interior se desenvolvia, a sensação de apatia da modernidade me afastava do todo e da fé. Então, eu me comprometi a resgatar minha conexão com o divino, através da minha religiosidade. A conexão com a transcendência tornou-se uma necessidade para a sobrevivência, e percebi que o processo de consciência de todo organismo e elevação do pensamento para além das orações, cânticos, giras e danças, é uma forma de me conectar com Deus.
A depressão afeta muito a frequência do viver e do cuidado. Confesso que a guerra que vivo contra os sentimentos da epidermização da violência colonialista no meu subjetivo, afetaram a forma como eu cuidava de mim e dos meus semelhantes. Tudo parecia muito difícil e o auto-ódio como ferida aberta, de resistir enquanto mulher negra na academia, longe de lugares sociais reservados para minha condição de classe e raça, contaminaram a forma como me permitia ser e estar. Envenena constantemente a forma como eu dou afeto a mim mesma e aos demais, sabota a expressão mais potente de minha humanidade.
Minha ponte com a transcendência estava contaminada pelos processos de racismo cotidiano enfrentados por uma mulher negra e pobre na sociedade colonialista e elitista do nosso país, que vive sob um regime autoritário que mata e negligencia a humanidade de comunidades tradicionais e marginalizadas. Internalizar esses processos me colocou em estados depressivos, no qual a autossabotagem e fuga de mim mesma foi um sentimento generalizado.
As leituras da disciplina me conduziram ao vislumbre de novas perspectivas, e percebi que a meditação, poderia me conduzir a um processo de conscientização de mim e de cura, muito rico e intuitivo, para ter forças para ver o ciclo de minha avó se encerrar na terra. A busca pela espiritualidade seria a mobilização de sentimentos e energias intensas, capazes de permitir grandes transformações interiores, e também externas pela compreensão de uma nova perspectiva existencial, longe do auto-ódio e das violências subjetivas.
A cada nova meditação no início das aulas, a intimidade com o eu profundo crescia e o sentimento de conexão com a voz que me guiava a cada sistema e órgãos do meu organismo, me dava segurança para concentrar em mim de maneira mais acolhedora. Sem medo de mim e sem medo de acolher minhas feridas e deixar a velha anciã curá-las e refazer partes de mim que pensei estarem perdidas. Iniciei paralelo à disciplina, uma rotina disciplinada para romper com as limitações políticas e culturais que me impediam de me conhecer e lidar com a circularidade e as fases da vida.
Buscando e me conectando comigo, posso oferecer a minha comunidade uma prática de saúde coletiva, que rompe com a lógica genocida que exige que nossos corpos cuidem da sociedade, mas que ninguém nos cuida e não nos cuidamos. Me comprometi com as meditações como um rompimento com a cultura de morte patriarcal que não permite a plena vida para mulheres negras como eu e como minha vó, que ofereceu saúde a todos, e acabou não percebendo a si mesma em um processo de adoecimento grave.
O câncer trouxe para minha vida uma crise subjetiva sobre o tempo e a fragilidade de nossas vidas, e por vezes me coloquei a pensar em como estaria minha vó, com todo processo de isolamento e dor que a doença traz ao corpo de quem vive. Me perguntei por vezes sobre sua alma e sobre seus questionamentos, se poderia ajudar e qual era o meu lugar enquanto neta, criada em colo a vida toda, naquele momento tão doloroso em que eu tinha poucos cuidados a oferecer visto o quão agressiva é a doença.
Percebi o cuidado como a categoria matriarcal capaz de estabelecer um novo acordo com nossa humanidade, e com a natureza; enxerguei além e vó o cuidado como o ato mais profundo de nossa natureza. E que seria ele o protagonista da jornada de cura e de promoção de saúde que eu me propunha vivenciar e pesquisar.
A colonialidade e o modelo produtivo ocidental, cria um padrão de ser muito associado ao consumo, à produtividade e ao lucro que somos capazes de gerar e acaba neutralizado a verdadeira potencialidade do ser que o cuidado nos proporciona. O cuidado nos conduz a um modo de ser consciente, que nos aproxima da grande mãe natureza. E o respeito, acolhimento e zelo, nos põe em contato com o espírito da delicadeza, que preserva e nos permite viver plenamente. No modelo de ser, a partir do cuidado em vez de dominação, há companhia e convivência amorosa.
Não somos soldados da produtividade e da busca incessante por um objeto de consumo. Somos humanos, frutos da natureza; e o cuidado nos conecta com o sagrado masculino e o sagrado feminino, nos reconecta com nosso coração e com nossa fonte de vida. Nos permite sentir; se sinto, logo existo. O cuidado nos faz florescer enquanto humanos. Nos faz ser.
O cuidado supera a ditadura patriarcal e colonial do modo-ser trabalho e resgata nossa energia criativa, circular, que nos permite o bem-viver, e também que levemos pelo nosso exemplo, saúde para a comunidade. Colocar o cuidado em tudo é um ato de cidadania, é uma forma de sentir a existência do outro e de enxergá-la e humanizá-la. É ir contra a política genocida que está instalada em nosso país desde sua fundação.
A política do amor surge como um potencial transformador na comunidade. Entrar em contato com meu eu durante as meditações me fez começar uma rígida rotina de cuidados com meu corpo e alma. Em um momento em que foi necessário projetar-se no futuro e imaginar-se vivendo na ótica do cuidado, percebi que pra mim, assim como para toda a população negra, se trata de um trabalho duas vezes mais difícil. Visto o trauma geracional deixado pela escravização e violências físicas e subjetivas que sustentaram esse modelo por séculos em nossa existência no Brasil.
A ferida aberta existente no meu inconsciente coletivo, me fez notar a potência do cuidado na minha existência e também fez perceber que a jornada nunca seria suficiente. Porque assim como diz bell hooks em seu texto Vivendo de Amor (1994), a nossa comunidade tem uma dificuldade muito grande em vivenciar o amor, em dar amor a si mesmos, ao outro e também em recebê-lo. A ferida da falta de cuidado grita em meu corpo a cada nova crise depressiva, quando não há autoestima ou uma negligência inconsciente de tantas práticas de autovalorização e auto cura para o meu corpo e alma.
Assumir um compromisso com a minha espiritualidade para além das possibilidades ideológicas existentes em torno da religião é promover a minha emancipação enquanto parte da população negra e pobre. Me concentrar em uma meditação de 1h na aulas foi a minha forma de quebrar o muro entre eu e minha intuição, minha dádiva ancestral com minha velha anciã para desbravar o universo do meu ser e estar enquanto humano que sobrevive e resiste a uma política de morte e reafirma a existência através do amor por si, do autoconhecimento e da arte.
Como comunicadora, percebo a urgência da mídia em promover saúde para a população. O sensacionalismo e a lógica do lucro que permeia o mundo da produção de notícias, ainda segue atuando na manutenção de ideologias dominantes, que desumanizam corpos negros em programas policialescos, tem como principal pauta a violência e as mortes vindas dessa violência. Além de perpetuar estereótipos limitantes que adoecem saúde mental e subjetividade de corpos, que diferem da lógica padronizada da sociedade brasileira que silencia corpos plurais, mantendo uma predominância de corpos brancos, limitando as possibilidades de representação e manifestações do ser para essa comunidade que, historicamente, conserva uma ferida aberta, fruto do racismo estrutural.
Tomar consciência dos meus órgãos e do sentimento espiritual em volta de cada um deles, me mantém conectada com Deus, me mantém fluindo as energias naturais da criação, me permitem viver meu ciclo criativo de vida-morte-vida. Daí a importância de ao longo das aulas refletir sobre a importância de conduzir os nossos pensamentos e encontrar com a nossa intuição ou como foi nos apresentada em uma das maravilhosas práticas de meditação das aulas, velha anciã.
Ela que nos conecta com nossa essência, valores e poderes criativos. Que mostra nosso frágil lugar perante a grandeza da mãe natureza, e nos permite aprender com os ciclos que chegam e vão embora com o nascer do sol e da lua. E nesse processo de compreensão dos ciclos e seus aprendizados, fui encontrando acalanto para minha guerra subjetiva contra a depressão e fui lidando com a partida da minha vó de uma forma diferente.
Coincidentemente, ao final da disciplina, minha vó fez a sua grande travessia para a outra vida e, sem dúvidas, ter-me conectado com minha intuição nos processos meditativos da disciplina de Espiritualidade e Saúde, me deu força e compreensão para o fim de seu ciclo é para extrair o aprendizado sobre o cuidado e a sua importância na rotina de vida de cada um de nós pela nossa fragilidade e saúde no sentido mais amplo. Pude perceber o grande e valioso legado de momentos felizes que minha ancestral me deixou, além dos aprendizados e das sabedorias que pude ouvir e absorver da sua grande fé em Deus e nos ancestrais.
Foi doloroso sentir a fria temperatura que informava ao meu tato que sua matéria estava se despedindo da minha companhia, mas pude enxergar a beleza da vida e da trajetória que teremos e deixamos na vida daqueles que amamos e em nós mesmos. Minha avó me deixou como maior expressão do seu existir e viver. Minha aparência, meus gostos e minha espiritualidade, vieram do que aprendi com a sua vida, e que continuar minha caminhada, me conhecer e me cuidar, seria a forma mais genuína de honrar a sua memória.
Buscar a minha saúde física, emocional, mental e espiritual é a forma mais potente de preservar o meu amor por ela, pela eternidade e de honrar a mãe natureza em mim. A velha anciã é a memória de amor que fica, para me guiar e me ensinar a grandiosa arte de viver, de se investigar, de humildemente reconhecer nossa pequena existência diante do grande universo. E, assim, expandir o meu ser e da minha comunidade, promovendo verdadeira libertação.
E uma das lições mais bonitas que aprendi em uma das últimas práticas da disciplina é que a nossa intuição também é uma criança e que independente das fases e crescimentos do corpo, ela permanece viva, nos conduzindo de uma forma carinhosa e com muita ternura a nossa verdade e nossos sonhos interiores. A prática de resgate da criança foi transformadora para mim em todo o processo; ela me despertou o desejo de explorar sentimentos e amores da minha criança interior por dias. Neles, pude enxergar as pendências e os sonhos que existiam dentro daquela criança que adora o Cine Teatro Guarani; ao resgatar o contato e intimidade com a minha criança interior, pude encontrar a arte e a conexão que me manteve forte para afirmar minha expressão, e enxerguei também o vibrante potencial criativo que minha memória ancestral me permite sentir e ser.
Fazendo as pazes com a minha criança interior, pude também revisitar os pesos do meu coração, os conflitos e as mágoas mal resolvidas com outros seres, em momentos passados. As práticas foram me conduzindo ao meu coração e me fazendo enxergar seus sonhos e pesos, que influenciam meu comportamento e meus hábitos. Percebi que meu coração guardava ainda sonhos e vontades de ser e viver, e que através da minha criança, poderia encontrar potência para expressar meu ser e minha voz. Ao afirmar que mesmo com a violência estrutural, minha humanidade e meu espírito se reinventam, seguindo o eterno fluxo de vida-morte-vida.
Com o tempo percebi que meditar, se fazer presente no meu corpo e perceber minha respiração já não eram mais uma dificuldade, e sim um prazer. Que me fazia voltar e enxergar a vida de outra maneira. Meditar me trouxe um sentido mais bonito para os simples hábitos de beber água, comer, dormir e observar o ambiente. Foi como fazer as pazes com o todo, entendendo que não sou alheia a isso, que a sociedade e as estruturas culturais são capazes de me limitar materialmente, mas que meu espírito e ser pertencem a uma grandiosidade que se renova a cada dia na dança universal da evolução.
A espiritualidade como caminho de busca de si, é uma retomada do território. É uma afirmação de nossas almas e formas de viver. É a potência que existe na margem do sistema; as capacidades de reinvenção da vida e da expressão do desejo e sabor de viver. Pensar nessas possibilidades emancipatórias, elevam nossa consciência enquanto seres humanos, nos humaniza e nos permite vivenciar uma política existencial de amor. Na qual, não temos medo de brilhar, amar e distribuir amor. A espiritualidade é um processo de luta política, é erguer uma nova possibilidade sobre e em um planeta que vivencia um processo destrutivo com os mecanismos de produção capitalistas.
E pensar as possibilidades de se discutir espiritualidade nas diversas áreas e setores da sociedade, é pensar na saúde coletiva de toda população, e pensando em populações historicamente violentadas, seria uma proposta de reparação e humanização de corpos que sofrem com a falta de promoção de saúde do nosso estado, principalmente no contexto político de negligenciar que vivemos atualmente. Negligência da saúde, educação e meio ambiente é a consolidação da política de morte que atua na modernidade como continuidade do projeto colonial.
O autoconhecimento e autocuidado são pra mim, ao final desse ciclo pedagógico, processos políticos e libertadores, que nos permitem conhecer a vida em sua plenitude e beleza. Agora, após me tornar consciente de mim, de meu corpo, das minhas potências e das minhas fragilidades, percebo que posso imaginar uma projeção de mim no futuro, tendo o cuidado como um aliado.
Como comunicadora, desejo em meus escritos e produções levar o máximo de saúde para meus espectadores e combater a limitação do ser nas representações midiáticas. Quero permitir vozes, contar histórias que toquem e transformem almas e sem dúvidas, construir representações humanas e positivas para a minha comunidade.
A disciplina foi um ciclo essencial de viver, me classifico em duas pessoas. Uma antes e uma depois de vivenciar essa conexão. A força e a compreensão que eu buscava para o momento difícil que o processo de adoecimento da minha ancestral trouxe, eu encontrei dentro de mim mesma. A força criativa e o poder de imaginar e realizar, encontrei dentro do meu ser e nas formas que penso estar. Eu descobri que a minha mente não precisa ser minha maior inimiga, como o adoecimento colonial provocou, mas ela é minha maior e melhor aliada para me cuidar, viver e sonhar.
Manter os sonhos vivos é uma luta. Manter contato com a criança interior é um ato político; é um jeito de conversar com o medo e de dizer pra ele o quanto ele é ingênuo perante a grandeza dos aprendizados da vida. Hoje, enquanto negra, pobre e acadêmica, quero incessantemente me conhecer, me amar e transbordar isso para minha comunidade.
Minha semente de esperança se renovou e se renova na fé nos ciclos que se fecham e nascem, na fé na minha ancestralidade e em Deus. A revolução social será espiritual. A mudança que queremos no mundo e no outro, começa no nosso ser e no nosso coração.
Com amor, Monis de Lima.
REFERÊNCIAS:
KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Editora Cobogó, 2020.
BARBOSA, Maria Inês. Racismo e Saúde. Tese de Doutorado em Saúde Pública, USP, 1998.
HOOKS, bell. All about love, London, Turnaround, 1992.
NASCIMENTO, Beatriz. Eu sou Atlântica. São Paulo, Imprensa Oficial, 2006.
ALMEIDA, Sílvio Luiz de. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte (MG):Letramento, 112 páginas, 2018.
FANON, Frantz. Os Condenados da Terra. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2005.
Foto de capa: Pexels.