Arquivo Negrê Mundo

Juneteenth: a celebração da resistência preta nos EUA

O Juneteenth Freedom Day também é conhecido como o Dia da Independência Negra e celebra o anúncio feito por Gordon Granger, um general da União, que declarava o fim da Guerra Civil nos Estados Unidos e a consequente libertação de todas as pessoas escravizadas.


A permanência da escravidão foi uma das questões políticas mais importantes dos Estados Unidos no século XIX, e foi também causa central da Guerra Civil. Como em tantos outros lugares no mundo, inclusive e talvez especialmente no Brasil, o trabalho escravo foi fundamental para algum sucesso econômico dos territórios colonizados.

O caso dos Estados Unidos apresenta um ponto ainda mais central de destaque: a escravidão lá praticada foi o que possibilitou à Inglaterra o pioneirismo na Revolução Industrial (1780-1840). O algodão produzido sob o suor e sangue dos negros escravizados chegava a preços ridiculamente baixos nas fábricas inglesas. Depois de ser processado nos novos teares mecânicos, viravam tecidos que se transformavam em lucros exorbitantes nos bolsos dos primeiros burgueses — que exploravam também a força de trabalho dos paupérrimos operários ingleses.

A escravidão nos Estados Unidos possibilitou o surgimento do capitalismo. A escravidão no Brasil (1500-1888) e no restante da América Latina, o quintal do mundo, forneceu os alimentos para que a força de trabalho do capital não padecesse de fome.

A Proclamação e a Guerra Civil

Abraham Linconl, o 16º Presidente Americano, foi eleito em 1860 com uma campanha abertamente abolicionista. No ano seguinte, sete estados do Sul dos Estados Unidos, onde a escravidão era mais forte e ainda era a base da economia, declararam que iriam se separar do país. Estava formada a Confederação e o cenário de fundo da guerra que estava por vir.

Para fortalecer a instituição da escravidão e aumentar as plantações e os lucros, a Confederação formou forças militares com o objetivo de ganhar territórios. Forças opostas, que tentavam unir o país (por isso chamadas de União), tentaram evitar o conflito, mas não conseguiram e ambos os lados se prepararam para a guerra. Em abril de 1861, o conflito estourou. Foram quatro anos de guerra e de gente pegando em armas para defender o direito de escravizar negros africanos e afro-americanos.

Aos poucos, as forças da União foram avançando. Quando os primeiros raios de sol do ano de 1863 tocaram os Estados Unidos, Abraham Lincoln preparava uma Proclamação que libertaria os 32 milhões de negros que ainda eram escravizados no país. Diante desse fato, é comum que, ao estudar a História dos Estados Unidos, o 1º de janeiro de 1863 seja apresentado como o dia em que a escravidão nos EUA chegou ao fim.

Entretanto, ao lembrar apenas dessa data, esquecemos de uma questão: a maioria desses escravizados estavam no sul dos EUA e ainda não havia chegado ao fim. Para que essa Proclamação pudesse ser realmente aplicada, as tropas da União precisariam avançar e derrotar de vez a Confederação.

Foto: Talena Reese/Pexels.

A 13ª Emenda e a Ordem Nº 3

A escravidão nos estados do Sul ainda permaneceu por algum tempo. Em dois estados de fronteira (Delaware e Kentucky), escravizar pessoas ainda era legalizado perto do fim da Guerra Civil. Também no Texas a escravidão se manteve viva, inclusive depois de acabar nos outros estados do sul.

Alguns motivos são apontados como possíveis responsáveis pelo fato de o Texas ter sido o último estado a acabar com a escravidão. O primeiro é que os senhores de escravizados esconderam as notícias sobre a Proclamação para continuar escravizando os negros. O segundo é que um mensageiro que levava as notícias foi assassinado antes de chegar ao Texas. O terceiro é que as tropas da União retardaram sua chegada ao Texas para que os fazendeiros texanos pudessem ter uma última colheita de algodão com trabalho escravo.

Independentemente disso, a escravidão só viu o seu fim no Texas com a chegada do general da União, Gordon Granger. As poucas tropas da União não eram capazes de aplicar a lei que acabava com a escravidão e apenas quando o general confederado Robert E. Lee se rendeu, em abril de 1865, foi que a União viu a possibilidade de avançar até o Texas.

Era 19 de junho de 1865 quando o general Gordon Granger comunicou a Ordem nº 3, que acabou com a escravidão no Texas, o único Estado da Confederação que ainda mantinha viva a instituição àquela altura.

Imagem atual do Texas. Foto: Trace Hudson/Pexels.

Informo, ao povo do Texas, que de acordo com a Proclamação do Executivo dos Estados Unidos, todos os estão livres. Isso implica em uma igualdade absoluta de direitos e direitos de propriedade entre os ex-senhores e os ex-escravos, e a relação até então existente entre eles se torna aquela entre empregador e trabalhador livre.

Ordem Número 3, General Gordon Granger

Em 6 de dezembro de 1865, a 13ª Emenda aboliu na própria Constituição a escravidão em todo o território dos Estados Unidos. Assim como a Guerra Civil, o trabalho forçado havia chegado ao fim.

O feriado negro de Juneteenth

O Juneteenth é a celebração mais antiga dos Estados Unidos em observância ao fim da escravidão. Já em 1866, ano seguinte à Ordem nº 3, o 19 de junho foi celebrado pela comunidade negra em várias partes do sul dos Estados Unidos, especialmente em festas religiosas promovidas por igrejas negras.

As celebrações incluem muita comida, apresentações culturais e reuniões familiares. Contudo, para diversos afro-americanos, também é um dia de orações e reverência à memória dos ancestrais que lutaram pela liberdade e pela manutenção da cultura. De acordo com o site juneteenth.com, vários descendentes de ex-escravizados no Texas até hoje peregrinam até Galveston, a cidade em que Gordon Granger emitiu a Ordem Número 3, para comemorar o dia.

Com a Grande Depressão e a Crise de 29, muitos negros migraram do sul para outros lugares do país no final da década de 1920 e durante a década de 1930. Eles buscavam tanto melhores condições de vida como fugir das políticas segregacionistas praticadas no sul dos EUA, visto que o fim da escravidão não necessariamente significava o fim do racismo.

Por causa disso, durante o século XX, a memória da data se espalhou pelo país inteiro, até que fosse inevitável reconhecer a sua força e importância. Vários estados foram instituindo o Juneteenth Freedom Day como feriados estaduais à medida em que as comemorações se tornavam maiores e maiores. Desde 2021, o 19 de junho, o Dia da Independência Negra é um feriado nacional celebrado em todos os estados americanos.

Foto: Guillaume Issaly/Unsplash.

Disputas em torno da memória da escravidão

Vez ou outra a gente se perde num debate sem pé nem cabeça que tenta descobrir — como se fosse possível comparar — em que país vigorou a pior escravidão: Brasil ou Estados Unidos? Esse debate ocasionalmente desemboca em um outro de mesmo tipo, que tenta aferir qual das duas nações tem o pior racismo.

Se, por um lado, é impossível — e até mesmo contraproducente — chegar a algum lugar com isso, por outro, é sempre possível e saudável observar as distintas experiências históricas como aquilo que elas realmente são: diferentes. A história de um lugar não precisa ser melhor ou pior que a de outro para ter sua importância, seja esta regional ou não.

Há também que se considerar a semelhança que existe dentro da diferença. Sim, a escravidão se manifestou historicamente de uma maneira diferente entre Brasil e Estados Unidos. Assim como as manifestações do racismo divergem de um país para o outro. Isso não muda, porém, o fato de ambos os países terem se construído sobre a escravização de negros e negras oriundos do Continente Africano. Como também não muda o fato de nossos ancestrais terem resistido das mais variadas formas desde o primeiro dia em que puseram seus pés na América.

Se a história oficial em torno do Juneteenth faz questão de lembrar apenas do Presidente e do general brancos, ela esconde a participação direta de negros e negras que tiveram importância vital na conquista da liberdade de seus irmãos e irmãs. Os exércitos da União contavam com milhares de ex-escravizados das colônias do Norte que, vendo-se livres, dispuseram-se a lutar pela liberdade dos seus.

Nos Estados Unidos, no Haiti, no Brasil ou no restante da América Latina… onde quer que seja, a luta dos nossos é a principal responsável pela superação da escravidão. “Me recordo dos meus ancestrais, todos continuaram”, canta Baco. E é isso mesmo, aqui e em todo lugar. A luta do nosso povo é a experiência universal da vida na diáspora.

Que não mais percamos tempo medindo opressões. Que olhemos para as diferenças das nossas trajetórias apenas como diferenças. E, mais do que isso, que possamos aproveitar as semelhanças que existem nessas trajetórias para nos reunirmos em torno daquilo que nos aproxima: a luta. Feliz Juneteenth pra gente. Lutemos.

Foto de capa: Pixabay.

LEIA TAMBÉM: Juneteenth: confira filmes sobre a luta pelo fim da escravidão nos EUA

Ouça o episódio #01 do Saúde Preta podcast – Por que falar sobre saúde da população negra?

Apoie a mídia negra nordestina: Financie o Negrê aqui!

Compartilhe: