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A raiva e o sofrer: eu, mulher negra, sinto raiva

Ligar a televisão, abrir redes sociais, trabalhar, sair de casa, interagir com outras pessoas são atitudes que podem em algum momento gerar algum tipo de sofrimento, raiva, angústia. Tempos de pandemia, vésperas de novembro negro, somos bombardeados com notícias de execução de vidas negras, jovens mortos por carregarem marmitas, imagens de pessoas coletando alimentos de carretas de lixo. Vidas negras em constante processo de morte e sofrimento.

Nossas vidas são recheadas de eventos traumatizantes. Negação de afeto, abandonos, exclusão, medo. Precisa demandar muito mais esforço e energia para conseguir o básico, inclusive o afeto. E receber nada ou quase nada. Tudo isso gera raiva.

Mas… em um mundo que te deixa em constante estado de raiva, cuidado: não aprender a lidar com esses sentimentos pode afetar quem amamos. E essas feridas não são tão simples de lidar.

Foto: Alex Green/Pexels.

Existência e cotidiano

Sentimentos fortes, conflituosos e que, para algumas pessoas, o simples fato de existir já é gatilho suficiente, são armas importantes. Como qualquer arma, podem servir para o bem e para o mal. Às vezes, o referencial só precisa mudar um pouco de posição.

Audre Lorde (1934-1992) é uma autora negra, lésbica, que articula muito bem possibilidades da articulação dessa nossa raiva. Ao nos chamar para tomar uma posição frente às opressões cotidianas, em seu texto “Dando uma virada” traz sobre a jornada complexa e difícil de lidar com a própria raiva, inerente à sua existência em sociedade, de forma a evitar machucar as pessoas que amava. Ela fala dos prazeres da compreensão, do novo olhar pro que antes parecia impossível, do desenvolver da confiança e da leveza do simples viver.

Foto: Alex Green/Pexels.

“Se eu não aprendesse a lidar com a minha raiva, como poderia esperar que as crianças aprendessem a lidar com a delas de maneira construtiva não a recusar nem esconder ou tornar autodestrutiva?” (Lorde, 2009, p. 26).

A raiva e o existir

“Tínhamos medo de que nossa raiva do mundo em que vivemos pudesse transbordar, contaminar e destruir alguém que amamos.” (Lorde, 2009, p. 27).

Simples viver. Aprender a lidar com nossas dores torna nossa jornada mais leve. Mas, pra isso, é preciso dar a cara a tapa, encarar.

Como mulher negra, fui e tenho sido ferida das mais diversas formas. Feridas que doem sempre mais quando vem de outra pessoa negra pela qual você nutriu afeto. Também, constantemente ferida, por quem amo e pelo mundo, sigo sentindo raiva. No entanto, sigo escolhendo, a cada momento, olhar com muito mais cuidado para a complexidade do outro. Prefiro o acolhimento ao abandono. Prefiro a compreensão à intolerância ao erro. Prefiro o amor à mágoa. Dessa forma, minha raiva pode ser utilizada como potência para outras áreas da minha vida e não como arma para atingir quem amo.

Foto: Alex Green/Pexels.

Infelizmente, não é um processo fácil. Somos homens e mulheres machucados. É preciso aprender a direcionar nossa raiva para que nossas relações sejam mais responsáveis. Não é conter, não é jogá-la sem direção. É potencializar, direcionar. Não adianta ser pé na porta, bradar seu direito ao topo, se ao menor ensejo de conflito sua primeira atitude é machucar quem você diz amar. Falar de afeto também é falar de prosperidade, é falar de ter acesso ao que te foi negado. E também inclui entender que precisamos ter cuidado para que nossas raivas não sejam direcionadas àqueles que estão ao nosso lado.

Foto: Alex Green/Pexels.

Que possamos, vivendo nessa sociedade que nos nutre os piores sentimentos, aprender a reconhecer e direcionar a nossa raiva para fins mais eficazes. Que possamos reduzir entre nós as mágoas e feridas e nutrir cada vez mais relações responsáveis, de confiança e solo fértil para uma geração cada vez mais potente.

Foto de capa: Alex Green/Pexels.

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