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Quando a imprensa assumirá a responsabilidade em propagar racismo?

O que ocorreu com o jogador do Santos, Marinho, abriu um debate, que atualmente tem sido bem difundido, sobre o racismo no futebol. Estamos repensando sobre como o preconceito racial caminha pelo esporte. Porém, como a grande mídia reflete sobre esse assunto?

Para relembrar o caso: durante a partida da semifinal entre Santos x Ponte Preta, Marinho foi expulso. Logo depois, o comentarista Fábio Benedetti, da rádio Energia 97 FM, falou que o jogador era burro e estava na senzala.

Se o Brasil é um país altamente racista, que marginaliza a população preta, mesmo esta sendo maioria quantitativa no país, a grande mídia se coloca no papel de construtor e solidificador dessa base.

Por isso, é necessário entender o papel social da imprensa e, sobretudo, promover um jornalismo antirracista que não fortaleça os esteriótipos raciais existentes e desenvolvidos ao longo da história. 

O que ocorreu com Marinho representa o lado racista de uma mídia que, por vezes, não realiza essa desconstrução e continua a desumanizar a pessoa negra.

No momento em que foi dito, as pessoas presentes no programa tinham o papel de intervir ao ouvir aquele comentário. A partir disso, podemos notar como a imprensa pode colocar o negro no papel de pessoa escravizada, sem nenhuma cerimônia. 

Sim, dizer ao jogador do Santos que ele está na senzala é uma representação de como a pessoa branca associa o negro ao estereótipo escravocrata. 

Benedetti foi demitido, e o apresentador do programa que participava disse que “assim encerra-se o assunto”. Pronto. Simples. Esse episódio fará com que o racismo na imprensa seja deixado de lado ou foi apenas mais um?

Racismo em pauta

No Brasil, o debate racial explodiu após da morte de George Floyd (1973-2020), assassinado por um policial branco no Estados Unidos. Alguns jornalistas negros reafirmaram que aquele não foi um caso isolado em outro continente. Também é algo comum no Brasil.

João Pedro, Cláudia, Amarildo, Gabriel, Ágatha e tantos outros não foram mortos apenas pela força policial. Seus assassinatos representam o Estado genocida que normaliza o extermínio de pessoas negras.

Quando o jornalismo brasileiro não debate sobre isso, não aponta essa realidade, ele é conivente. O que aconteceu com o Marinho é apenas a “ponta do iceberg“. 

Programas policiais, que normalizam violências, difundem a ideia de “justiça do povo”, o que incentiva ainda mais linchamentos, em sua maioria, a pessoas negras. E não, não é o tal “linchamento virtual” que alguns dizem existir; é o real, físico, que mata. 

As elaborações das manchetes jornalísticas também são um destes sintomas racistas da imprensa. Basta fazer uma pequena pesquisa no Google para analisar que, quando há pessoas negras suspeitas de um crime é muito comum nomeá-la por esse crime. O “traficante” é bem comum neste cenário.

Quando se trata de uma pessoa branca, a formação da manchete é diferente: o traficante se torna “estudante”, “jovem” ou “morador”.

Diversidade e representatividade

Também é necessário analisar como os veículos de comunicação têm bem menos pessoas negras jornalistas em suas redações. E quantos comentaristas negros há no esporte? Quantos repórteres? Este espaço embranquecido por tantos anos faz parte do debate por uma imprensa antirracista.

A GloboNews reunir jornalistas negros para conversar sobre racismo foi um algo inédito que representou uma quebra nessa hegemonia branca no jornalismo. O debate foi promovido em resposta a vários questionamentos nas redes sociais sobre a falta de pessoas negras para falar justamente das estruturas raciais. Um comentário irônico havia ilustrado bem a cena em que apenas jornalistas brancos falavam de racismo: “Rapaziada… A pauta é racismo”, disse um usuário do Twitter.

No entanto, também é importante pontuar que Ali Kamel, diretor geral de jornalismo da Globo, é autor do livro Não Somos Racistas. Uma Reação aos que Querem nos Transformar Numa Nação Bicolor. O que esperar de uma emissora que não debate suas raízes racistas?

É preciso muito mais que chamar alguns jornalistas negros para debater o racismo. É necessário muito mais que demitir o racista do programa. Uma mudança radical é urgente. 

Maria Júlia Coutinho foi a primeira jornalista negra a compor a bancada do Jornal Nacional, desde sua criação, há mais de 50 anos. Glória Maria e Zileide Silva já foram âncoras do Fantástico, Jornal Hoje, mas nunca apresentaram o telejornal mais importante da emissora. 

Porém, devemos ressaltar que profissionais negros da comunicação possuem qualificações e não devem ser chamados apenas para falar sobre as questões raciais. Essa também é uma maneira de desumanização.

De acordo com o Perfil do Jornalista Brasileiro (MICK; LIMA, 2012) apenas 23% (5% pretos e 18% pardos), compõem o jornalismo no País. 

Segundo estudo feito pelo Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (GEMAA), mais de 70% dos formadores de opinião da Folha, Globo e Estadão são homens, e mais de 90% são brancos (chegando a 99% no Estadão). Até o momento da pesquisa, a Folha de São Paulo não possuía nenhuma colunista negra, enquanto no jornal O Globo havia um percentual de 4% e no Estadão, de 1%. 

Estes números representam a disparidade de representatividade negra nos grandes veículos. E isto reflete diretamente em suas ações antirracistas.

Luta antirracista na imprensa

Portanto, a imprensa tem um papel fundamental na construção do imaginário da população, bem como o racismo que é difundido socialmente.

Se 56,10% da população se declara negra no Brasil, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua do IBGE, estes números precisam ser mostrados nos diversos espaços sociais, incluindo o da imprensa. 

A realidade brasileira ainda está longe de ser a ideal quando se trata de uma mudança nas estruturas racistas que marginalizam a população negra. Se comentaristas de futebol ou de qualquer outro tema na imprensa ainda se sentem confortáveis em serem racistas diante de todos, estamos longe de atingir o ideal de um jornalismo antirracista. 

Nós, pretos, jornalistas, pessoas da comunicação, estamos resistindo e caminhando para conquistar nosso espaço. Porém, o caminho não será fácil. 

Foto de capa: Divulgação/Nappy Studio.

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