A virada para o século XIX foi marcada por um evento que redefiniu o Ocidente; uma insurreição tão bem sucedida que foi capaz de espalhar medo entre os senhores de todo o mundo colonial, que mostrou aos brancos que eles não eram tão invencíveis como achavam ser. A Revolta de São Domingos ou Revolução Haitiana (1791-1804), como também é conhecida, foi a maior insurreição de negros escravizados nas Américas, responsável ao mesmo tempo pela abolição da escravidão e pela Independência do Haiti – declarada em 1º de janeiro de 1804 – em relação à França, fazendo que este se tornasse a primeira república negra do Ocidente.
O cenário colonial
A ilha de São Domingos, atual Haiti, era colônia francesa desde 1697. Antes disso, era colônia espanhola, onde se explorava ouro com mão-de-obra indígena escravizada. O modelo visceralmente predatório de colonização espanhola reduziu a população indígena da ilha de quase 1 milhão de habitantes para 60 mil em apenas 15 anos. Os nativos, quando não eram assassinados, morriam de fome, doenças desconhecidas ou exaustão decorrente do trabalho forçado. Foi diante deste cenário que São Domingos passou a ser, assim como o Brasil, um dos principais destinos dos navios negreiros que traficavam africanos escravizados para as colônias europeias no Novo Mundo.
Sob o domínio francês, a ilha se tornou uma das colônias mais rentáveis do Ocidente, agora mais distante do comércio de ouro, com sua produção voltada para o mercado açucareiro. Ao fim do século XVIII, São Domingos era responsável por cerca de 45% da produção mundial de açúcar. Toda essa rentabilidade da colônia era sustentada pela exploração de corpos negros escravizados.
Da população de 536 mil habitantes, apenas 56 mil pertenciam à elite branca europeia. A população escravizada, de 480 mil, correspondia a 90% das pessoas na ilha. Devido à alta taxa de mortalidade dos escravizados na ilha, São Domingos era um dos principais destinos do tráfico internacional de escravizados, de sorte que, mesmo no século XVIII, a esmagadora maioria dos negros presentes nas plantações eram nascidos em África.
Diante desse cenário, as elites brancas começaram a se organizar para caso houvesse algum tipo de rebelião. Esse era um medo latente dos europeus donos de terra, cientes de que eram somente 10% da população da ilha e que uma revolta generalizada poderia vir a ser uma ameaça. A partir de 1758, por exemplo, uma série de leis foram aprovadas no fito de restringir ainda mais os direitos de pessoas de cor (as poucas que eram livres) em São Domingos. Isso porém não impediu que os conflitos violentos entre colonos brancos e negros escravizados parassem de acontecer. Pelo contrário, esses conflitos e pequenos levantes, marcadores da resistência negra na ilha, foram se acentuando cada vez mais.
A Revolução explode
Durante a década de 1750, os maroon (uma espécie de agrupamento de escravizados fugidos, como os quilombos brasileiros) viram sua estratégia sofrer algumas alterações. Eles já eram famosos pela tradição de ataques às plantações de açúcar e café e pela tentativa de libertar outros negros escravizados. Contudo, sob a liderança de François Mackandal (assassinado pelos franceses em 20 de janeiro 1758), a resistência negra dos maroon foi unificada e algumas estratégias foram se consolidando na tentativa de alcançar o derradeiro objetivo: a emancipação. Mesmo após a captura e o assassinato de Mackandal, em 1758, os maroon mantiveram a estratégia de ataques sistemáticos às propriedades dos colonos.
Anos depois, o que antes eram ataques isolados e pequenos levantes se tornaram uma verdadeira insurreição. Em uma cerimônia religiosa ocorrida no dia 14 de agosto, Dutty Boukman, sacerdote Vodu e líder dos maroon, deu o sinal para o início da revolta. Era 22 de agosto de 1791 quando os escravizados de São Domingos se revoltaram e deram início a uma verdadeira guerra civil na colônia, uma revolta de escravizados jamais vista.
Em dez dias, os negros assumiram o controle de toda a Província do Norte. Apenas alguns campos fortificados isolados da província continuaram sob o controle dos brancos. A vingança escrava estava vindo com toda a força. Eram séculos de estupro, tortura, mutilação e morte que estavam sendo cobrados.
Como dito, há algumas décadas, os brancos da ilha já temiam uma revolta. Por essa razão, eles se prepararam armazenando armas e formando pequenos exércitos para se defender dos ataques. Porém, em poucas semanas, mais de 100 mil pretos e pretas já haviam se somado à revolta, cada dia mais violenta. Nos primeiros meses, estima-se que foram executados 4.000 brancos. Além disso, mais de 180 engenhos de açúcar e centenas de plantações de café e índigo foram queimadas ou destruídas.
No ano seguinte, em 1792, os revoltosos já controlavam um terço de toda a ilha. O sucesso da rebelião forçou a eleição de uma Assembleia na França, que se via diante de um cenário profundamente ameaçador. Uma série de direitos civis e políticos foram outorgados aos negros e mestiços livres nas colônias, como tentativa de proteger os interesses econômicos franceses e reduzir o plantel de revoltosos. Essa decisão chocou o mundo dos brancos. Outros países da Europa, ao lado dos Estados Unidos, assistiram atônitos os trabalhos da Assembleia. O medo era tanto que essa decisão não era suficiente. Milhares de soldados franceses também foram enviados à ilha para combater os insurretos.
A liderança de Louverture
O haitiano Toussaint Louverture (1743-1803), militar autodidata filho de escravizados domésticos, foi um dos mais bem-sucedidos comandantes negros, considerado uma peça chave no desenvolvimento da Revolução. Após uma invasão britânica, Louverture barganhou sua posição, oferecendo lutar pelo exército francês em troca da liberação de todos os escravizados da ilha, que conquistou em 29 de agosto de 1793. Toussaint, então, formou um exército composto quase inteiramente de negros libertos e conseguiu expulsar forças espanholas da ilha e garantir concessões britânicas, restabelecendo à França o domínio de São Domingos.
Todavia, nesse movimento Toussaint acabou se tornando uma espécie de senhor da ilha. Durante esse período, buscou governar de forma relativamente autônoma, vencendo disputas locais de poder e restringindo como podia a influência da França em São Domingos. Ao final de 1798, o seu exército conseguiu expulsar as tropas britânicas da ilha. Em dezembro de 1800, Toussaint organizou uma invasão a Santo Domingo, uma ilha vizinha, na qual libertou também todos os escravizados de lá, em janeiro de 1801.
Também em 1801, Louverture emitiu uma nova Constituição para São Domingos, afirmando a autonomia da ilha e decretando que ele próprio seria governador vitalício. Isso foi suficiente para reacender os conflitos. Napoleão Bonaparte (1769-1821) enviou seu cunhado, Charles Leclerc (1772-1802), para liderar um grande número de soldados e navios de guerra no objetivo de restabelecer o controle francês na ilha. O conflito foi sangrento e Louverture acabou se rendendo em troca de sua liberdade e do cessar fogo. O que aconteceu, porém, foi que ele foi capturado pelos franceses e enviado à França, onde morreu meses depois, preso no Fort-de-Joux.
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Vitória e independência negras
Com o controle sobre a ilha restabelecido, os franceses tentaram restaurar paulatinamente a escravidão. Apesar de alguns meses de tranquilidade sob o domínio napoleônico, os negros e as negras da ilha logo perceberam a intenção dos franceses quando estes retomaram o regime de escravidão em Guadalupe. O haitiano Alexandre Pétion (1770-1818) e o guineense Jean-Jacques Dessalines (1758-1806), antigos líderes do exército de Louverture – integrado às forças francesas -, mudaram novamente de lado e reacenderam as forças revolucionárias.
Charles Leclerc morreu de febre amarela, junto com parte de seu exército, em novembro de 1802. Seu sucessor, o francês Visconde de Rochambeau (1755-1813), promoveu uma campanha mais brutal contra os revoltosos. Contudo, uma série de perdas em outros territórios do mundo colonial francês provocou um considerável enfraquecimento da França, tanto em poderio militar como econômico para financiar uma defesa eficiente.
A última batalha da Revolução Haitiana, a Batalha de Vertières, aconteceu em 18 de novembro de 1803. Dessalines liderou o exército revolucionário até, finalmente, derrotarem as tropas francesas. Em 1º de janeiro de 1804, Jean-Jacques Dessalines declarou oficialmente a Independência da antiga colônia de São Domingos, renomeando-a segundo um nome indígena Arawak, passando a se chamar Haiti. Dessalines, nascido escravo e ex-líder revolucionário, agora era chefe de estado da primeira nação negra pós-colonial e independente do Novo Mundo, aplicando ao império colonial francês um golpe decisivo.
O contra-ataque colonial
Os primeiros anos de Independência foram duros para os agora haitianos. O país estava completamente devastado devido aos anos de guerra, a agricultura estava inviabilizada e o comércio formal era praticamente inexistente. Como se não bastasse a frágil situação interna, pressões da França e Espanha fizeram que os Estados Unidos impusessem ao Haiti um bloqueio econômico que se somava a diversos outros, impossibilitando o comércio exterior.
Além disso, em 1825, o Haiti foi obrigado a indenizar os antigos franceses donos de escravizados em troca do reconhecimento de sua Independência, que ainda era negado pela França 21 anos depois. O montante dessa multa era de 150 milhões de francos suíços. Em 1838, esse valor foi reduzido para 60 milhões. Essa multa faliu o Tesouro do Haiti e subordinou seus cofres públicos aos bancos franceses, que com juros abusivos deram o golpe fatal no poder econômico da nação recém nascida.
O saldo da Revolução: repercussões e significados
Após a independência, o Haiti ainda foi responsável pela libertação de vários escravizados na América Latina. O estado haitiano apoiou, com armas e dinheiro, o exército de Simón Bolívar (1783-1830), em troca justamente da abolição da escravidão nos territórios que fossem libertados.
Sem dúvidas, um dos maiores impactos da Revolução foi no mundo dos brancos. Pela primeira vez, a Europa se via derrotada de forma incontornável por aqueles que há séculos subjugava. Para o mundo colonial, a derrota instalou uma onda de medo de que outras nações, assim como o Haiti, nascessem independentes a partir da resistência das negras e dos negros escravizados.
Após a Independência (1804), o Haiti ofereceu também alguns caminhos pelos quais se destruiria também as bases do sistema escravista, com a finalidade de inviabilizar qualquer possibilidade deste ser restabelecido. Europeus remanescentes foram massacrados, as propriedades e os direitos da população branca foram confiscados. Além disso, os grandes latifúndios, antes palcos da servidão compulsória no sistema de plantation, foram convertidos em pequenas propriedades familiares. O mundo colonial foi desmontado no Haiti.
Parte considerável dos processos de independência na América Latina podem ser compreendidos como ocorridos sob certa influência das repercussões envolvendo a Revolução Haitiana. Diante do medo de que uma revolta semelhante viesse a acontecer, as elites coloniais no restante da América buscaram conduzir os países à independência, mantendo certo controle sobre esse processo para que a experiência haitiana não se repetisse em seus respectivos territórios.
É por essa razão que, de certo modo, estudar a Revolução Haitiana é estudar o nascimento do mundo contemporâneo. O Haiti é extremamente importante para compreender a formação dos Estados Nacionais na América Latina. Contudo, é também fundamental para compreender os contornos do mundo colonial após a sua independência. Não à toa os países da Europa foram tão viscerais na violência perpetrada contra os povos africanos antes e, sobretudo, após a Conferência de Berlim (1884-1885).
Não à toa os próprios europeus assumiram certo controle das descolonizações no Continente Africano, amenizando suas perdas. A Revolução Haitiana inaugura no imaginário branco a concretude do medo negro, pois agora sabem o que somos capazes em nome de nossa vingança e liberdade. Com efeito, a Revolução Haitiana, tanto ou mais que a Francesa (1789-1799), instaura o mundo contemporâneo.
Foto de capa: Reprodução.
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Historiador pela Universidade Federal do Ceará (UFC), atuando como professor de História. Tem experiência com Patrimônio Histórico e Cultural (SECULTFOR) e estuda trauma em literatura de testemunho na Ditadura Civil-Militar, racismo ambiental e necropolítica. Gosta de música, café e outras artes, tem interesse em temas relacionados à política e cultura e uma paixão inexplicável por aviões.