Segundo dados do Atlas da Violência de 2020, para cada não-negro, 17 morrem
Apenas em 2018, no país, 75% das vítimas de homicídios eram negros. Para cada não-negro morto no brasil, 2,7 morreram no mesmo período. Esse dado chega a ser alarmante em Alagoas (AL). O Estado lidera o ranking entre os estados do Brasil em relação a taxa de homicídios da população negra. Em AL, apenas em 2018, a taxa de vitimização do negro é a de 17 maior do que um não-negro. Esta é uma dura realidade que se repete ao longo dos anos.
Os dados do Atlas da violência de 2020 divulgados em agosto pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), dão conta de que 628.595 pessoas foram assassinadas no Brasil entre 2008 e 2018.
No mesmo período, houve um aumento nas taxas de homicídio no país para a população negra. Só para se ter uma ideia, houve um crescimento de 11%, enquanto que para não-negro diminuiu em 12%. Além do risco da população negra ser vítima chegar a ser maior para homens com o percentual de 74% e para mulheres, 64%.
O estudo foi elaborado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) com dados do sistema de informação sobre Mortalidade, do Ministério da Saúde. Segundo classificação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), são considerados negros a soma representada pelos pretos e pardos. Já os não-negros são brancos, amarelos e indígenas.
E ainda aponta para o dado de que 71% dos assassinatos neste período foram praticados por arma de fogo. A informação levanta a discussão sobre o porte de arma de fogo. O presidente em exercício Jair Bolsonaro (Sem Partido) é um dos grandes entusiastas no sentido de tentar a todo custo relaxar os protocolos para a obtenção de uma arma de fogo no país. No mês de agosto, a Instrução Normativa (IN) nº 174, publicada pela Polícia Federal (PF), flexibilizou procedimentos para posse, porte, comercialização e registro de arma de fogo e munições no país.
A Instrução Normativa constitui-se como normas administrativas complementares que detalham o que contém em um decreto presidencial ou portaria. A IN nº 174 tem como ideia adequar-se a decretos publicados em 2019 pelo presidente.
A dor da perda
Por trás dos números existem histórias e familiares que perderam seus ente queridos. O jornalista Railton da Silva, 33 anos, é um deles. Ele perdeu seu irmão em janeiro de 2018. Robson Teixeira da Silva, 22 anos, foi assassinado na madrugada do dia 22 de janeiro de 2018. Seu corpo foi encontrado à tarde na região da Lagoa Mundaú, localizada na Zona sul da capital alagoana. Mesmo sendo noticiado pela mídia local. A família só teve conhecimento do ocorrido no dia seguinte.
Segundo o jornalista Railton da Silva, 23 de janeiro de 2018 foi um dia bem tempestuoso em Maceió, capital de Alagoas. Uma chuva forte que inclusive provocou deslizamentos de terra. “Acordei de manhã, eu estava recolhido em um quarto de santo que chamamos de ‘roncon’, tinha passado pelos procedimentos iniciáticos do candomblé”.
Quando soube da notícia pelo seu líder religioso, o irmão de Robson Teixeira da Silva estava recolhido e fora de qualquer contato com o mundo externo. Na religião de Matriz Africana Candomblé, o candidato à iniciação é mantido em um quarto por 21 dias. Ele(a) tem a cabeça raspada e recebe marcas no braço ou na cabeça. Até receber a notícia, Silva teve um pressentimento.
“Eu olhei para a minha irmã [Dalvanira Ferreira] de quarto que nos recolhemos junto. Eu acordei e olhei para ela e foi quase no automático. Minha irmã, é o último dia que estou aqui nesse quarto. Estava com 18 ou 19 dias do período iniciático e só faltavam 3 dias para terminar o procedimento”, relata.
Ele conta que passou o dia entristecido. E, por volta das cinco horas da tarde do dia seguinte, a morte do irmão, o seu babalorixá chega no terreiro e pede para todo mundo se retirar, toma um banho de limpeza e vai jogar os búzios. “Eu sabia que tinha uma coisa estranha. Minhas malas já estavam prontas para deixar o ambiente. Eles vieram tocando um sino e tocando uma música chamada derrubada de Quelê”.
O Quelê constitui-se como uma aliança com o intuito de unir o sagrado com o iniciado. Trata-se de um colar usado pelo iniciado na religião para simbolizar a união com o seu orixá.
“Ele derruba meu Quelê dizendo que Xangô pediu. No jogo [de búzios], o Xangô gritou e disse que eu tinha muita coisa para fazer. Muita atividade aqui fora. Ele faz todos os procedimento do candomblé e depois me dá a notícia. ‘Olha, Railton, seja forte. Seu irmão foi assassinado’. E eu não tinha noção de quem era, qual dos três irmãos, mas já imaginava que era o Robson”, recorda.
Antes do recolhimento para cumprir as obrigações religiosas, o jornalista e o seu irmão conversaram por telefone. “Foi quase que uma despedida. A última vez que o vi foi dois dias antes, eu fui na casa dos meus pais. Encontrei ele, dei um abraço nele e disse: tome juízo”.
Railton saiu da casa de santo aproximadamente às 19h, do dia 23 de janeiro. A cidade ainda acometida de muitas chuvas, ele pegou um carro de aplicativo e foi para a casa dos pais. Chegando ao local, é recebido com comoção. O pai estava recém-operado de um procedimento cirúrgico responsável por trocar uma válvula do coração. O seu irmão tinha saído numa sexta-feira e estava desaparecido. Na segunda-feira, dia 22 de janeiro de 2018, encontraram o corpo na Lagoa Mundaú.
“No outro dia de manhã, a vizinha vai e vê a imagem num site de notícia aí aciona a minha mãe. E fala: ‘olha, vem cá, vê se esse aí é o Robson’. Aí acabou o nosso mundo. Até então, eu não sabia. Para mim, foi muito doloroso. Porque, eu jornalista, comunicador popular das periferias e estudioso das relações violência e Estado. Eu me vi diante de um caso de estudo”, conta o jornalista que sempre estudou a relação entre o Estado, violência e periferia.
Segundo Railton, logo após a morte do seu irmão, a Polícia Civil de Maceió fez uma operação e prendeu alguns acusados. Mas, ainda assim, não o convenceu em relação ao que, de fato, ocorreu. Para ele, o que aconteceu foi uma limpeza étnica.
“O laudo deu cinco tiros, segundo o documento ele morreu em decorrência da queda. Ele caiu com o impacto dos projéteis, teve uma fratura no crânio e morreu. E ele foi desovado na Lagoa Mundaú, o que mais me dói é isso. Eu me senti muito impotente, ter o que eu estudo e me relaciono e não puder evitar essa morte. Infelizmente, mais um número. Até hoje, está sem explicação. E associou-se ao tráfico de drogas. E fica por isso mesmo. Por mais que a gente lute e busca respostas como muitas famílias nunca teremos”, acrescenta.
Os números, o Movimento Negro e a segurança pública no Estado de Alagoas
Para o Militante do Movimento Negro em Alagoas, Geysson Santos é importante compreender que o aumento do número de vitimização do negro em Alagoas não é um fenômeno. E o Atlas da Violência quando é divulgado ano a ano só reafirma que o Movimento Negro vem colocando ao longo do tempo. No sentido de que o genocídio da população negra é um projeto de Estado.
“E quando a gente parte desse ponto, de que é um projeto de Estado. É que o Estado ele se configura de uma maneira ao considerar que o corpo negro passa a ser um inimigo. Quando ele entende o corpo negro como um inimigo a lógica de segurança pública passa pela compreensão de que é necessário destruir ‘esse inimigo’”, pontua.
De acordo com Santos, a compreensão é histórica e vem sendo configurada dessa forma no Brasil quando a política de segurança pública do Estado brasileiro opta por uma ostensividade e expansão da militarização das polícias. Um exemplo disso foi a instituição do Plano de Segurança Nacional Brasil Mais Seguro, em Alagoas. Instituído para ser uma resposta aos altos índices de violência no estado.
“Então, no fim das contas, em Alagoas não existe política pública para a população negra, mas quando ela é pensada a gente pode entender que é o genocídio. Na verdade, essa crescente no número de vitimização do corpo negro trata-se de uma política de Estado. Porque esse mesmo Estado se configura de uma maneira que não é pra prevenir e, sim, combater”, defende.
Em relação às possíveis saídas na tentativa de diminuir esse número tão cruel. O militante diz que o Estado tem que entender que não se acaba com a violência intensificando a presença do policiamento. “Isso é sério. Isso é um fato. Sabe, porque todas as vezes que foi tentado conter a violência dessa maneira, a violência aumentou”.
Santos afirma que não dá para tentar combater a mortalidade da população negra sem antes oferecer garantias de condições básicas de existência para uma parcela da população. “No fim das contas, estamos tratando de vidas. De uma parcela da população que não está tendo o direito de viver. Então, a gente tem que conseguir garantir que a população esteja viva porque agora Covid-19 está matando e a gente sabe inclusive quem mais está morrendo.
Por exemplo, em relação a letalidade pelo novo Coronavírus no Estado. Dados dos últimos boletins epidemiológicos, divulgados pelo Centro de Informações Estratégicas e Resposta em Vigilância em Saúde (CIEVS/AL) – desde a inclusão do fator cor/raça – apontam que houve um número de óbitos maior de pretos e pardos (população negra) em relação às pessoas brancas. Nos boletins epidemiológicos analisados no mês de agosto, das 1.594 pessoas que perderam a vida para a Covid-19 em Alagoas, 1.090 foram classificadas como pardas, 167 como brancas, 52 identificadas como pretas e 285 óbitos não tiveram a cor divulgada.
Além dos dados de letalidade da população negra que são alarmantes, o Estado é fortemente marcado pela desigualdade social, a má distribuição de renda e uma das polícias que mais matam. Segundo dados do levantamento feito pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) tendo como base números da Pesquisa Nacional por Amostra de domicílios (Pnad), no ano de 2019, Alagoas tem a maior desigualdade de renda do país entre os trabalhadores de 15 a 59 anos de idade.
“Há uma manutenção da desigualdade no Estado como Alagoas. É essa a manutenção da desigualdade que não muda, não cabe a um estado que é constituído na base da oligarquia. Então, são esses gestores que se beneficiam. Essa desigualdade acontece porque eles estão no topo. Eles estão no topo observando o caos que está aí embaixo. E quem está no caos somos nós”, reflete.
A implantação de programas de segurança pública do Governo Federal
Por conta dos altos índices de violência, o Estado serviu de piloto para o programa de Segurança Pública do Governo Federal, à época, intitulado: Brasil Mais Seguro. A iniciativa foi implantada em 2012, na época do governo da ex-presidenta Dilma Rousseff (PT), na tentativa de combater a violência e criminalidade no país.
De acordo com o professor de ciência política, do Instituto de Ciências Sociais, da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), Emerson do Nascimento, o programa Brasil Mais Seguro foi implantado em um momento crítico da Segurança Pública do Estado. E mostrou-se importante porque impactou positivamente, sobretudo em relação ao sistema de informação da Secretaria de Segurança Pública do Estado.
“De lá pra cá, como pode ser atestado pelos relatórios anuais do Atlas da Violência e do próprio Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Alagoas conseguiu uma redução expressiva da letalidade, especialmente na capital, Maceió. Todavia, o segundo carro-chefe da política que era alavancar a taxa de resolução de inquéritos de homicídios parece que não se mostrou suficiente. Em pesquisa recente do Instituto Sou da Paz, por exemplo, Alagoas ficou fora da avaliação nacional dos índices de impunidade. Ou seja, em termos práticos: desconhecemos a taxa de resolução de inquéritos de homicídios no estado, o que nos faz supor que não deva ser suficientemente expressiva”, acrescenta.
O docente ainda pontua que essa redução de homicídio mostrou um efeito perverso e, de fato, não foi igual quando relacionado os dados entre brancos e não-brancos.
“Como já foi fartamente destacado, Alagoas é hoje um dos territórios onde a população negra e parda está, potencialmente, mais vulneráveis à crimes violentos letais intencionais. Finalmente, um último ponto que eu destacaria ainda é o fato de que a redução de homicídios veio acompanhada ainda de um crescimento significativo de casos de violência policial e aqui eu chamo atenção para o crescimento do volume de mortes cometidas por policiais em serviço no estado, cuja população afro-alagoana também é a principal vítima”, finaliza.
Sem respostas
Por inúmeras vezes, a reportagem entrou em contato com a assessoria de comunicação da Secretaria de Segurança Pública de Alagoas questionando o porquê do Estado amargar altos índices de letalidade da população negra, além da tentativa de ter conhecimento sobre ações que a pasta vem adotando para diminuir dados tão alarmantes. Mas até o fechamento desta reportagem, não obtivemos retorno.
Ilustração de capa: Suellem Cosme.
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É Jornalista e escritor. Morador da periferia. Autor de “Os deuses estão embriagados de uísque falsificado” (Sirva-se edições alternativas – Oxenti Records, 2019). Vencedor dos prêmios: IV Concurso de Poesias Jorge de Lima, Secult – AL – 2018, Arte como Respiro, Itaú Cultural – 2020. Editor do site: O que os Olhos Não Veem. Estudante de Letras – Português, da Universidade Federal de Alagoas (Ufal). Acredita no jornalismo independente, pautado pela diversidade e pelos direitos humanos.