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Centralidade étnico-racial no projeto de cidade: caminhos possíveis para romper os pactos com a cidade do trator

Nasci e me criei em Natal, capital do Rio Grande do Norte. Nas férias de meio e fim de ano, era comum ir para à praia ou para o interior, dependendo de onde estavam morando meus avós maternos. Lembro de chegar nos pequenos municípios e ser conhecida como “a neta de dona Raimunda e seu João, ela veio da cidade”. 

Para escolher onde seria o próximo lar, algumas coisas eram essenciais. Não me lembro de uma valorização sobre o tamanho da casa, mas lembro que era muito importante quantas redes dava para armar e se tinha varanda/alpendre. Lembro de que a cozinha, esta sim, tinha que ter um tamanho bom, para juntar a família. Nem pensar uma casa toda cimentada. Tinha que ter espaço para criar as galinhas e para o plantio. 

Tenho revisitado as memórias da família – as minhas e, especialmente, as dos meus mais velhos. Acessando essas memórias e pensando sobre os espaços do que minha vó tem chamado de “tempo bom”, não vejo prédios altos, pois ver o horizonte era importante. Não vejo tudo cinza, o chão era de cimento queimado, e ainda assim nem sempre era cinza, às vezes era um vermelho (na minha opinião, muito bonito). Não vejo tantas superfícies envidraçadas, e a tecnologia valorizada era a madeira que permitia construir uma porta, que também era janela. 

Longe de mim querer romantizar esses espaços. Acontece que não vim falar das ausências, mas das presenças. As presenças de outras prioridades, muito distintas das observadas na tal “cidade grande”, presenças que constroem futuro, e que não edificam progressos (Herta, 2020). O projeto da cidade do “progresso”, que tanto temos visto crescer nas cidades brasileiras, tem por meta encarecer cada vez mais o preço da terra, e tudo que estiver sobre ela. O slogan facilmente pode ser “vende-se uma cidade”. 

Logo, estamos falando de um projeto de cidade que se fortalece quão maiores forem os abismos das desigualdades sociais, e que é vendida em uma mesma vitrine, independente de sua localização no globo: superfícies envidraçadas, revestindo arranha céus, acompanhados dos slogans da moda. Muros, câmeras e cercas são os sinônimos de segurança. E para as pessoas e os espaços que não couberem nessa lógica e não puderem pagar por ela, o trator passará por cima, como tem passado. 

Pensar em uma outra cidade, que não a cidade do trator, não exige que comecemos um projeto do zero, mas exige encararmos a urgência de um projeto coletivo (por nós e para nós) que tenha como centro a racialização do nosso pensar e fazer. Observando o que os nossos mais velhos reconhecem como qualidade de vida, temos importantes apontamentos de caminhos possíveis

Ao olhar para as territorialidades das populações negras e indígenas, por exemplo, frequentemente iremos nos deparar com o mar, os rios, as matas e os morros. Essa relação com o meio ambiente está muito além de atividades econômicas. Meu avô tinha a rotina guiada pelo nascer e pelo pôr do sol. A cada fase da lua, observando a maré, vó organizava seus passos. Não é puramente uma relação de subsistência, mas principalmente relações que carregam outros modos de viver, de morar, de habitar e construir espaços. Outras noções guias de tempo e espaço.

Na construção dessa outra cidade, Tainá de Paula aponta que “em um cenário positivo, se pudéssemos reorganizar nossas matrizes étnico-ambientais, a relação ancestral entre moradia, produção e comunidade seria resgatada” (PAULA, 2020). O Nordeste do que conhecemos como Brasil demonstra que além de um cenário positivo, este é um cenário possível. Observo aspectos dessas matrizes ancestrais expressos nas resistências do cotidiano. Não precisamos inventar a roda. Olhemos para trás, escutemos, e vamos em frente construindo um futuro

REFERÊNCIAS

HERTA, Itala. A gente é o passado que não passa. 2020. Disponível em < https://www.uol.com.br/ecoa/colunas/opiniao/2020/08/05/a-gente-e-o-passado-que-nao-passa.htm>.

PAULA, Tainá de. Cidades Pós-pandemia ou cidades pós-capitalistas?. 2020. Disponível em <https://www.uol.com.br/ecoa/colunas/taina-de-paula/2020/07/31/cidades-pos-pandemia-ou-cidades-pos-capitalistas.htm>

Foto de capa: Sarah Esli (RN).

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