Na incessante batalha que denuncia a desigualdade social e pelo nato direito de ser-estar-ocupar, a negra voz que, predominantemente, emana das comunidades de muitas metrópoles, aqui em Fortaleza, no Ceará, também grita. E grita também aguda a plenos pulmões, peitos e útero. Ela vem de dentro de corpos duplamente violentados, duplamente marginalizados e renegados o direito a seus espaços mesmo, inclusive na arte. Quem dá coro a histórias de milhares de mulheres periféricas são as As Cumade do Rap, primeiro grupo de mulheres do Ceará, a transformar em poesia suas dores, seus partos e seus “corres” diários.
Representatividade
As pioneiras do coletivo de rap feminino aqui do estado do Ceará formaram o grupo As Cumades do Rap, em 2007. Cantar a vida, os sonhos e os desafios de ser mulher negra e periférica têm sido uma realização para todas. “Por mais que os rappers homens falem sobre as nossas dificuldades, eles jamais sentirão na pele o que só a gente sabe. O que é SER mulher só cabe a nós”, conta Nega Ana, fundadora do grupo.
Sentada no chão da praça com as cumades, ouço os relatos, as ressalvas e o orgulho delas em terem conquistado avanços no cenário local junto a outras mulheres que antes tinham pouco ou quase nenhum espaço no Rap do Ceará. “A nossa luta pode colocar em evidência a mulher no rap. Nesse espaço que era e ainda é bastante ‘homificado’. Criamos o grupo para dar o protagonismo da mulher periférica, pra denunciar o machismo, o racismo e ocupar nosso local de fala, que já foi secundário”, conta.
Perpassando por várias formulações das integrantes, cada uma com sua vivência, sua contribuição e seus motivos pessoais de afastamento. Mas nem por isso esquecidas, quando pergunto do início, as cumades, relembram gratas quem já passou pelo coletivo e deixou sua história. Mc Bebel e Luana, que são parceiras, estavam na formação inicial. Hoje, o grupo segue com Nega Ana, Bruna Késsia, Jéssica e Dona Kilza, que estão sempre nos espaços com mics abertos em várias comunidades, que representam as mulheres em festivais de Fortaleza e outros lugares do estado do Ceará. O que, para elas, é uma imensa vitória.
Elas compõem suas rimas a partir de suas vivências e saberes. Cada uma fala de uma quebrada, cada uma traz marcas, superações, filhos e planos. Bons planos. O apoio mútuo entre elas fortalece e inspira o grupo. Não se fecham entre si, se misturam em meio a outras iniciativas e empoderam as mulheres por onde passam. Nessa onda, as cumades organizam, anualmente, o ‘Batalha 8 de Março’, para ressaltar sempre a luta das mulheres em uma roda de rimas, empatia e vivências.
Resgate das periferias
A cultura Hip-Hop é uma das principais fontes de inspiração paras as Cumades, há todo um embasamento teórico e referencial na fala delas. Explanando sobre o surgimento do movimento Hip-Hop como espaço político, que surgiu para contestar o sistema, os padrões. Com nascedouro nas periferias, Nega Ana, se volta para a atualidade e entende que as pautas do Hip-Hop mudaram um pouco devido à globalização, aos meios tecnológicos e ao próprio mercado fonológico com sua mercantilização. “Foi-se perdendo, ao longo do tempo, a característica original do senso crítico, devido ao processo de padronização e avanço do mercado. Mas nosso papel é resgatar esse hip-hop que contesta, que vive a realidade periférica, que faz denúncias”.
Para as cumades, a direção agora é colocar as mulheres pretas como uma potencialidade. “Nós criamos redes de afetos, de autocuidado para que a gente possa sobreviver na nossa realidade tão dura, tão difícil que é a realidade de ser mulher preta e periférica. Nosso rap é um resgate da denúncia, mas é também uma forma de elevar potencialidades”. Tornar as mulheres periféricas uma referência têm sido uma construção diária, além de uma rede de sororidade e empatia entre todas as rappers que elas conhecem. Já que entendem a rima como uma arte que transforma vidas e eterniza histórias.
Com ou sem amplificador, ou grandes plateias, elas dão o seu recado de resistência e empoderamento da mulher negra. Em composições próprias, elas saúdam a nossa ancestralidade em versos fortes que são hinos de celebrações pela luta de tantas outras que aqui estiveram para que nós chegássemos depois, e tantas outras possam vir.
Então, é por todas as silenciadas que elas seguem nas batalhas, com poesia, peito, amor e resistência. E naquela noite foi assim… Um ‘mic’ na mão: sonho na alma, cria no colo. Elas seguem juntas por todas as silenciadas e privadas de suas vidas.
África na pele, África no sangue, África na vida
Negra guerreira de fé
Negra guerreira mulher
Negra guerreira de fé
Negra guerreira mulher
Preta bela e poetisa
África na pele, no sangue na vida … ♫
(África na pele – As Cumades do Rap)