“Nada blinda preto de racismo!”. Foi a frase que Glória Maria disse em entrevista para o programa Roda Viva, da TV Cultura, na última segunda-feira, 14. Imediatamente relembrei uma conversa com uma amiga sobre a sensação de estar sempre juntando os meus cacos. Seguimos numa luta constante, da qual largamos há mais de 130 km atrás dos brancos para conquistar melhores condições de vida e, mesmo que alcancemos nossos objetivos, sabemos que fama, conhecimento, dinheiro e/ou frequentar os melhores lugares não nos protegem do racismo.
Glória Maria estava certa: a invenção da raça faz com que não seja possível nos blindarmos, pelo contrário, nos faz quebráveis. A sensação é de que, a qualquer passo, nosso chão pode rachar e cairemos no emaranhado de sutilezas que é o racismo (NASCIMENTO, 1974). Não importa a minha bagagem de leitura, o acesso que eu mesma viabilizei para estar em determinados espaços, ou o dinheiro que eu ganhe: eu sempre vou me quebrar diante de um caso de racismo.
Ele pode se dar de forma explícita, como uma abordagem policial, ou de uma forma sutil, como alguém pedir pra tocar o meu cabelo. Pode acontecer comigo ou com alguém que eu conheci através de uma reportagem que relatava a violência que aquela pessoa sofreu: eu vou me quebrar porque eu sei que poderia acontecer comigo. E eu sei que se você, leitor, for preto, preta ou prete, vai me entender.
Raça e a branquitude
De fato, sabemos que a noção de raça é uma invenção branca (MBEMBE, 2014; FERREIRA, 2019). É uma “ficção útil”, um construto social que tem como objetivo criar uma hierarquização da convivência, estabelecendo como inferiores os povos não-brancos. Mesmo ciente disto, sinto que projetar uma ascensão social é estar constantemente confrontado a uma aproximação com o ideal branco, visto que toda a estética, a identidade e as expectativas da sociedade em que vivemos é elaborada a partir deste ideal, como já destacava Neusa Santos Sousa (1983).
Trago como exemplo o caso recente do diretor do filme pantera negra, Ryan Coogler, que foi detido ao ser confundido com um ladrão quando tentava sacar o dinheiro da sua própria conta. A fama e o dinheiro não o blindaram, pois, a raça sempre chega primeiro. Isso me relembra as percepções de Fanon (2008) ao falar sobre a experiência vivida do negro, no qual o autor faz um relato de um encontro com os franceses que traz muito sobre a experiência racial: a raça como uma clausura. O sujeito racializado deseja conhecer e pertencer ao mundo, mas ao tentar fazer isso se descobre enclausurado na raça. Ser negro é pertencer aos marginalizados, deslocados, diaspóricos. É estar constantemente murado, no sentido de barreira e não de proteção.
Buscas e estratégias
A sensação de que buscar melhorias é sempre querer se aproximar de um ideal branco vem de uma sociedade construída a partir dos parâmetros da branquitude, com impactos subjetivos que podem produzir exigências pessoais de ser duas vezes melhor, negação racial, auto desvalorização e/ou conformismo, por exemplo. Mas é possível tecer outras estratégias: “Um novo ideal de ego que lhe configure um rosto próprio, que encarne seus valores e interesses, que tenha como referência e perspectiva a História. Um ideal construído através da militância política, lugar privilegiado de construção transformadora da História” (SOUZA, 1983, p. 44).
É possível juntar nossos pedaços, construir novas formas de nos colocar no mundo, forjar novas narrativas. Este texto é, inclusive, uma tentativa neste sentido. Finalizo com um trecho de Jota Mombaça (2017), no qual a autora afirma: “[…] não sabem que nossas vidas impossíveis se manifestam umas nas outras. Sim, eles nos despedaçarão, porque não sabem que, uma vez aos pedaços, nós nos espalharemos.”. E espalhados, construiremos fissuras para ruir cada coluna que um dia nos prendeu.
Referências bibliográficas
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução: Renato da Silveira. – Salvador: EDUFBA, 2008
MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. Antígona, Lisboa, 2014
MOMBAÇA, Jota. O mundo é meu trauma. Disponível em: <https://piseagrama.org/o-mundo-e-meu-trauma/>. Acesso em: 17 mar. 2022.
NASCIMENTO, Maria Beatriz. Por uma História do Homem Negro. In: RATTS, Alex. Eu sou Atlântica: sobre a Trajetória de Vida de Beatriz Nascimento. São Paulo: Imprensa Oficial/Kuanza, 1974, p. 93-98.
SILVA, Denise Ferreira da. A dívida impagável. 2019. Disponível em: <https://casadopovo.org.br/wp-content/uploads/2020/01/a-divida-impagavel.pdf>. Acesso: 01 ago. 2020
SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se Negro ou as Vicissitudes da Identidade do Negro Brasileiro em Ascenção Social. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983.
Foto de capa: ShotPot/Pexels.
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Mulher-preta-cearense, filha de Maria do Carmo. Assistente Social e mestra em Sociologia, ambos pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). É pesquisadora e especialista em Legislação Social, Políticas Públicas e Trabalho Social (Pótere Social). Encantada pela escrita e movida a expressar mundos através das palavras. Curiosa e pesquisadora, principalmente, nos seguintes temas: juventudes, raça, arte, violência, sistema socioeducativo e questão urbana. Cursa o Doutorado em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC).