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O que essa prova ensina? Uma reflexão sobre violências simbólicas

Durante uma graduação em História, não são poucos os textos que mudam a forma do discente se relacionar com o conhecimento sobre o mundo e sobre o passado. Alguns textos, em especial, convidam o leitor a refletir sobre a própria prática profissional. Esses, ao meu ver, produzem uma mudança mais significativa no historiador que se forma do que aqueles que proporcionam um certo acúmulo de “conhecimento histórico”.

No meu percurso durante a graduação na Universidade Federal do Ceará, um texto em particular virou minha cabeça ao avesso. Trata-se da transcrição da participação de Verena Alberti, uma historiadora que pesquisa sobre o ensino de História e História Oral, em uma mesa redonda realizada dentro de um evento da ANPUH, a Associação Nacional de História, em 2014. O tema do evento era “História e Ética” e o da mesa redonda era “A ética no trabalho do historiador”.

Durante a sua fala, a professora discute questões relacionadas à ética na prática docente dos professores de História. Nada novo até aí. Esse tipo de discussão a gente tem desde o primeiro semestre do curso. Mas Alberti toma um caminho inovador: ela pensa sobre a ética do professor a partir de questões de prova. A ideia central é pensar “que ideia de história” determinada questão traz embutida. Mas ao pensar isso, ela propõe uma pergunta que mudou a minha forma de se relacionar com processos avaliativos, de um modo geral: o que determinadas questões de prova estão ensinando?

No mês passado, uma questão da prova de língua estrangeira do Enem me fez lembrar dessa reflexão por causa da polêmica envolvendo uma suposta incorreção no gabarito oficial. Como se tratava de uma questão da prova de inglês, o texto de referência, uma passagem do romance “Americanah”, da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, estava no idioma estrangeiro. Vou reproduzir a questão aqui com uma tradução própria do texto, sob o risco de algumas imprecisões ou eventuais erros:


Finalmente, Aisha terminou com a sua cliente e perguntou que cor Ifemelu queria em seus acessórios de cabelo.

“Cor número quatro”
“Não é uma boa cor”, respondeu Aisha prontamente.
“É a cor que eu uso”
“Mas fica parecendo sujo. Você não quer a cor número um?”
“A cor um é muito preta, fica parecendo falso”, disse Ifemelu, afrouxando seu turbante. “Às vezes eu uso a cor número dois, mas a cor quatro é mais próxima da cor natural de meu cabelo”

[…]

Ela tocou o cabelo de Ifemelu. “Por que você não alisa?”
“Eu gosto do meu cabelo do jeito que Deus o fez”
“Mas como você o penteia? É difícil de pentear”, disse Aisha.

Ifemelu havia levado seu próprio pente. Ela penteou gentilmente seu próprio cabelo, denso, macio e bem enrolado, até que ele emoldurasse sua cabeça como uma auréola. “Não é difícil de pentear se você hidratar adequadamente”, ela disse, inclinando-se para o tom proselitista persuasivo que ela usava sempre que tentava convencer outras mulheres negras acerca dos méritos de usar o seu cabelo natural. Aisha resmungou; ela claramente não conseguia entender por que alguém escolheria sofrer para pentear seu cabelo natural ao invés de simplesmente alisá-lo. Ela dividiu o cabelo de Ifemelu, pegou um pequeno acessório da pilha na mesa e começou a enrolar habilmente.

ADICHIE, Chimamanda. Americanah: A novel. New York: Anchor Books, 2013.

A passagem do romance da escritora nigeriana traz um diálogo entre duas mulheres negras: a cabeleireira, Aisha, e a cliente, Ifemelu. O posicionamento da cliente é sustentado por argumentos que:

A) reforçam um padrão de beleza.
B) retratam um conflito de gerações.
C) revelam uma atitude de resistência.
D) demonstram uma postura de imaturidade.
E) evidenciam uma mudança de comportamento.


Pensar as provas como momentos de aprendizagem, identificando e questionando os ensinamentos trazidos pelas questões, amplia nossa percepção e aguça a nossa sensibilidade para determinadas violências que um processo avaliativo pode trazer. Para além de toda a problemática de provas serem associadas a processos muito violentos de ansiedade, as questões presentes em uma avaliação, a depender da maneira que são formuladas, também podem reforçar violências simbólicas muito significativas.

A polêmica envolvendo a questão que citei acima ocorreu porque o gabarito oficial divulgado pelo INEP indicava que a resposta correta era “D) demonstram uma postura de imaturidade”. Contudo, depois de algum barulho, o INEP se retratou, alegando um equívoco técnico relacionado ao banco de dados das questões, corrigindo a resposta para “C) revelam uma atitude de resistência”. Apesar da correção, eu ainda vejo como problemática a situação como um todo.

Eu e meu cabelo contra o sol, na Praia de Iracema, em Fortaleza-CE (2016). Foto: Alessandra Pereira/Arquivo pessoal.

Quando eu tinha mais ou menos 16 anos, eu comecei a me envolver com uma moça. Aquela coisa toda de paixão de adolescente. Resolvemos namorar e fui ser apresentado à família dela, branca e católica. Conversa vai, conversa vem, a mãe dela me disse que gostaria de impor três condições para “aceitar o nosso namoro”. Uma delas, acabei de me lembrar, era que ela passasse a frequentar a missa todos os domingos – até fui junto algumas vezes, o padre era engraçado. A outra, não me lembro. Mas a condição da qual nunca esqueci foi que eu cortasse o black power que eu recém havia começado a cultivar. 

Na época, aceitei a contragosto. Aquilo me entristecia porque eu gostava do meu cabelo, mas eu não conseguia ter a dimensão da violência racista à qual eu estava sendo submetido. Na minha cabeça, era só uma birra de mãe, pois meus pais e avós também implicavam com o meu black e eu achava que era só uma “questão de gente velha”. Anos depois, quando entendi o que havia acontecido, chorei por três noites me culpando por ter permitido que algo assim me acontecesse.

Voltando para o episódio envolvendo a questão do Enem, quem estuda História sabe que, na maior parte das vezes, não importa se houve ou não a intenção de fazer determinada coisa. O que importa é o que aconteceu, no contexto em que aconteceu e os efeitos que isso teve ou pode ter tido – é a partir da observação e análise desses fatores que o historiador produz sentidos sobre o passado.

O que quero dizer com isso, é que não faz diferença se foi um erro de digitação no gabarito ou se foi proposital. Associar à imaturidade o fato de pessoas negras amarem seus próprios cabelos é violento em todo caso, sendo essa associação causada por um erro técnico ou não. Uma resposta como essa em uma questão como essa ensina, ou melhor, reforça que pessoas negras não são vistas como iguais, e que essa inferioridade é realçada quando negamos a nos submeter a processos de embranquecimento.

Vou além: até mesmo a resposta correta, que associa essa negativa a uma postura de resistência, embora contemple boa parte do que isso significa, parece-me insuficiente. Faz parecer que tudo o que a gente faz com o nosso corpo é e precisa ser político, no sentido de luta prática contra o racismo, quando às vezes a gente está somente tentando suportar a existência na própria pele e, se possível, se amar um pouquinho no meio do caminho.

Para mim e outros tantos, que foram sempre colocados no lugar de “mais feios da sala” e que, muitas vezes, tomaram para si essas narrativas, o cabelo foi o primeiro sinal de amor. Quando o black power cresceu, foi a primeira vez em muito tempo que me olhei no espelho e gostei um pouquinho do que vi. Por mais que isso tenha um sentido social de resistência política, no universo da minha individualidade era muito mais sobre amor do que qualquer outra coisa.

Esse sou eu, em 2016, prestes a fazer 19 anos, deixando o black crescer novamente. Foto: Arquivo pessoal.

Amar a nós mesmos, em um mundo que faz o possível para que aceitemos o ódio aos nossos corpos como natural, requer muita maturidade. De certo modo, amar a nós mesmos está vinculado a alguma ideia de resistência política. Não é problema que esteja. Problema mesmo é quando essa ideia de resistência está distante de alguma ideia de amor. Subtrair o amor desses processos todos é violento. Não deixemos que isso aconteça.

Foto de capa: Santi Vedrí/Unsplash.

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