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Depende de quem está contando a história.

Nasci em Salvador (BA)… ou como dizem meus conterrâneos, estreei na Bahia. Sem me conhecer, alguém poderia argumentar que esta é a minha identidade, que eu sou soteropolitano. Mas, por exemplo, para a minha mãe, eu sou simplesmente o filho dela. O primeiro filho dos cinco que ela eventualmente teria. Sete anos após meu nascimento, mudei de Capital baiana para o Rio de Janeiro (RJ) com a minha família.

No Rio, eu era, finalmente, o menininho baiano. Nove anos depois, mudei-me para o centro do Brasil, para a capital de Minas Gerais… após a mudança, me tornei conhecido pelos belo-horizontinos como Guido – o carioca. Mais uma vez, a percepção da minha identidade mudou mais rapidamente do que eu troquei meus códigos postais. Mais sete anos se passaram e , já em Paris (França), as cidades onde morei no Brasil não importavam mais e, à medida que o alcance crescia, meu país era o prisma central através do qual as pessoas me viam. Naturalmente, me apresentei como brasileiro.

Foto: Arquivo pessoal.

“Je suis Brésilien” – eu dizia nos arrondissements parisienses.

As identidades, especialmente as que nos são atribuídas sem o nosso consentimento, são relacionais. Assim, as percepções dos outros mudarão, dependendo de onde estamos e, embora possam revelar parcialmente fragmentos de nós, essas percepções de identidade nunca definirão quem somos.

Hoje eu poderia dizer que sou… latino, brasileiro, nordestino, australiano, carioca, mineiro, melbourniano, escritor, insulano (da Ilha do Governador), nordestino, flamenguista, sambista, rockeiro, funkeiro. Eu ainda poderia dizer que sou… pai, homem cisgênero, homem negro retinto, acadêmico, imigrante, divorciado e muito mais. Muito muito mais…

A beleza da vida é esta. Qualquer uma dessas identidades é potencialmente verdadeira dependendo de onde estou, com quem estou e em que circunstâncias estou.

Mas se você me perguntar quem eu sou, tenho uma resposta no meu âmago que dou para mim mesmo: sou um homem negro afro-brasileiro, descendente daqueles humanos forçados a sair da África, roubados aos milhões do Continente para as Américas. Também sou filho de Adilson e Rosa. Não que eu também não seja todas essas identidades acima. Eu sou tudo isso; no entanto, esta é para mim. Esta identidade central que é meu Norte. Posso até chamá-la de identidade marco zero.

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Identidades no cinema

Na cultura popular, filmes como Doutor Estranho no Multiverso da Loucura (2022), Homem-Aranha: Através do Aranhaverso (2023) ou Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo (2022) especulam na ficção sobre diferentes universos. Nesses universos, temos outras vidas dependendo da direção que tomamos e das identidades que assumimos. Embora eu goste do light entretenimento cinematográfico, acredito plenamente que o multiverso está bem aqui conosco. Nesse espetáculo chamado vida, temos a capacidade de habitar múltiplos e complexos personagens.

Foto: Olemedia/iStock.

Social media acabou as nuances?

As plataformas de mídia social, porém, têm o péssimo hábito de insistir na simplicidade. As declarações de posicionalidade sobre determinado assunto precisam ser constantemente elaboradas e postadas por indivíduos que, muitas vezes, não têm ideia do que dizem. Eu li dezenas de livros sobre escravidão no Brasil (1535-1888), porém, no mundo digital, minha opinião tem o mesmo peso que alguém que leu um poste na página do pastor André Valadão.

Outro detalhe tenebroso nesse online multiverso, é que não se é dado a possibilidade de evolução à pessoa. No mundo online, qualquer coisa… e enfatiso, qualquer coisa mesmo que você tenha dito há seis meses ou dez anos atrás pode e será absolutamente usada contra você. Multiplicidade de identidade não é permitida. Lá perdura o “nós versus eles” ou o tudo é “ou do meu jeito ou de jeito nenhum”.

Foto: Divulgação.

Maniqueísmo

Recentemente, após alguns acontecimentos globais, eu fui confrontado com esse novo paradigma. Conheço humanos gentis que apoiaram o Jair Bolsonaro e conheço racistas terríveis que votaram em Lula. A vida é complicada pra caralho, e todos deveriamos lidar com isso com mais maturidade e empatia. Porem, as pessoas adoram o maniqueísmo e a dualidade. Essas crendices simplistas ajudam-nas a dormir sem sentimento de culpa quando se deitam a noite. Muitas acreditando que estão do “lado certo da história”. Pergunto isto honestamente ao leitor e a leitora: A história de quem? E mais importante, quem é o historiador(a)? Quem sabe o quê e por quê?

Nós, humanos, precisamos de histórias simples para dar sentido ao mundo complexo que nos rodeia e, embora este seja o caso na maioria dos conflitos no mundo, é difícil para as pessoas compreenderem que você pode ser uma vítima e um opressor ao mesmo tempo. É um fato elementar e facilmente comprovado, mas impossível de ser aceito pela maioria das pessoas. Na opinião de muitos, ou alguém é vítima ou é opressor e, para pessoas que pensam assim, não há outra maneira de existir no mundo.

Mas a realidade está longe desse simples binário. Geralmente, somos vítimas em algum nível e déspotas em outros. Podemos oprimir e ser oprimidos desde o nível micro dos indivíduos e da forma como nos comportamos com pessoas das nossas famílias, até ao nível macro de como interagimos com instituições e estados-nação; geralmente somos os dois para melhor ou para pior.

Ao entender isso, é possível termos mais empatia e entender como outros podem ter tomado decisões tão diferentes das nossas. No final das contas, tudo depende mesmo de quem está contando a história.

Foto de capa: Anete Lusina/Pexels.

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