Dez dias de rebelião e sangue derramado marcaram a virada do ano de 1831 para 1832 na Jamaica, país localizado no Caribe (América do Norte). A Grande Rebelião dos Escravizados Jamaicanos foi uma insurreição generalizada contra o sistema escravista, responsável por acelerar o processo de abolição da escravidão na ilha.
Um histórico recente da resistência
Anos antes, entre 1760 e 1761, os senhores de escravizados da freguesia de Santa Maria presenciaram uma revolta escrava que durou 18 meses e mobilizou cerca de 1.500 negros escravizados. O saldo da revolta? Sessenta senhores de escravos mortos e centenas de propriedades destruídas. Tudo isso enquanto os britânicos estavam envolvidos na Guerra dos Sete Anos (1756-1763), contra a França e a Espanha.
Após a revolta, na fase da repressão, mais de 500 escravizados foram mortos e outros 500 levados para outras localidades nas Américas. Algo que ainda desperta a curiosidade dos historiadores, sobretudo aqueles afeitos à História Espacial, é a cartografia da revolta. O estudo das movimentações dos revoltosos indicam que a revolta foi muito bem planejada, como também mostra que eles possuíam um vasto conhecimento da topografia da região. O que foi fundamental para o desenvolvimento da revolta.
Os anos passaram e o mundo viu embasbacado surgir, em 1804, a primeira nação negra livre desde que os europeus botaram os pés no Continente Africano: o Haiti, fundado a partir de uma revolta de negros escravizados. A Revolução Haitiana (1791-1804) significou, para os negros escravizados nas Américas e para os colonizados em África, a possibilidade de inserir a liberdade nos horizontes de expectativas. A liberdade agora era uma possibilidade concreta.
A Grande Rebelião
No Natal de 1831, foi a semente da liberdade que os escravizados jamaicanos tentaram plantar novamente – e que, desta vez, renderia os frutos desejados anos mais tarde. Entre dezembro de 1831 e janeiro de 1832, aconteceu a Grande Rebelião dos Escravizados na Jamaica, também conhecida por Guerra Batista.
A Rebelião durou dez dias e mobilizou cerca de 6000 negros escravizados. O nome Guerra Batista decorre do fato de que a revolta foi liderada pelo pastor batista Samuel Sharpe (1804-1832) e apoiada pelos membros da Igreja Batista entre os escravizados.
Cerca de 14 brancos, entre donos de terra e superintendentes, e 190 negros foram mortos durante a rebelião. Como resposta à rebelião, centenas de rebeldes foram condenados. Parte recebeu, dos tribunais militares, a pena de morte –e foram enforcados, tiveram suas cabeças cortadas e colocadas nas lavouras. Aqueles que escaparam da pena de morte foram duramente castigados, que, em alguns casos, levou à morte desses sujeitos. O líder do movimento, o Pastor Samuel Sharpe, foi capturado e enforcado em praça pública. A brutalidade da repressão à revolta foi um dos fatores que acelerou o processo de abolição da escravidão na Jamaica.
O historiador Vincent Brown, 53 anos, no livro “The Reaper’s Garden: Death and Power in the World of Atlantic Slavery” (2008), investiga a maneira como a morte e as significações, crenças e práticas e ela associadas (que ele denomina “políticas mortuárias”) se relacionam com a manutenção da ordem e também com a eclosão de conflitos sociais.
Para o autor, a morte desempenha um papel fundamental na construção do cotidiano de sociedades escravistas. Na sua investigação, ele se debruça sobre a realidade da escravidão na Jamaica, posto que esta era conhecida pela alcunha de “cemitério dos europeus”. Brown pontua, por exemplo, ao tratar de como a relação com os mortos implicava no mundo dos vivos, que o discurso sobre a morte se fazia presente não só em conflitos e rebeliões, mas também na política parlamentar.
A liberdade é uma conquista nossa
É muito comum que estudemos os movimentos abolicionistas nas Américas como decorrentes dos nobres ideais iluministas dos europeus liberais. Quase como se os negros escravizados no Continente Americano não tivessem pensado em liberdade antes que os britânicos os ensinassem a fazê-lo. Contudo, o que Brown demonstra em seu livro, é justamente o inverso. Foi o contato com a brutalidade do sistema escravista, somada à resistência dos escravizados, que despertou, entre os britânicos, um sentimento antiescravista.
Nesse sentido, a morte de fato serviu às retóricas abolicionistas dos britânicos nas assembleias. Foi com a morte que estes simbolizaram a “decadência moral” do Império. A mesma morte que, muito antes, mobilizaram revoltas e em torno da qual se organizaram verdadeiras redes de resistência entre os escravizados, no fito de buscar algum tipo de proteção.
Nesse horizonte, faz mais sentido imaginar a relação entre os movimentos de libertação de negros escravizados nas Américas com a Revolução Haitiana e com seu próprios históricos internos de resistência. Pensar esses processos dessa maneira não só tira a indevida centralidade do branco europeu, como também nos reaproxima da nossa história de luta na diáspora, dando o devido peso a tudo que nós conquistamos.
Ao fim da Grande Rebelião dos Escravos Jamaicanos, houve um processo de cinco anos até a libertação dos escravizados da ilha, em 1838. A história das descolonizações, pode-se pensar, teve início no primeiro dia de colonização. A resistência ao regime mercantil de escravidão começou com o primeiro corpo negro compulsoriamente embarcado nos porões de um navio do mercado internacional de escravizados. A história do mundo inteiro pode ser contada pela perspectiva da resistência dos subalternos. Nas Américas, de Norte a Sul, passando pelo Caribe, esses corpos subalternizados somos nós, negros.
Foto de capa: DepositPhotos.
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Historiador pela Universidade Federal do Ceará (UFC), atuando como professor de História. Tem experiência com Patrimônio Histórico e Cultural (SECULTFOR) e estuda trauma em literatura de testemunho na Ditadura Civil-Militar, racismo ambiental e necropolítica. Gosta de música, café e outras artes, tem interesse em temas relacionados à política e cultura e uma paixão inexplicável por aviões.