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Precisamos ir além do “Preto/a, seu cabelo é lindo”

Hoje em dia, se tornou comum encontrar vídeos e frases positivando e exaltando as pessoas negras. Geralmente, esse conteúdo está relacionado a estética, como cabelo, nariz, boca. Frases como “Preto você é lindo”, “O seu black é coroa” ou “Preta, sua boca é linda” são comuns nas redes sociais e fazem sucesso, muitas vezes, demonstrando um movimento de valorização da negritude. Por mais que esses discursos sejam importantes, é necessário aprofundá-los, pois há grandes chances de cairmos em um campo raso e individualizante da luta antirracista.

Ser preto e preta em uma sociedade racista geralmente é muito doloroso, e quando compartilhamos nossas vivências encontramos pontos de convergência, mesmo compreendendo a diversidade e interseccionalidade relacionada às experiência da negritude no Brasil. Nos relatos de pessoas negras, é comum encontrar situações racistas em relação a estética, a exemplo dos discursos sobre o cabelo crespo ou traços negroides, de piadas, de olhares, apelidos, brincadeiras e outras formas concretas que o racismo se apresenta.

Também é possível perceber experiências simbólicas na narrativa racista, a exemplo da falta de comercialização de bonecas pretas, produtos para cabelo crespo, maquiagem para a pele negra, pouca representação de pessoas negras na mídia e outras formas. Todas essas experiências servem para construir subjetivamente um lugar do “outro”, a ideia de que estamos fora de um padrão de sociabilidade, estética, beleza, consumo e que ser negro/a é ruim, sujo, feio, vergonhoso. É frequente encontrar crianças e adolescentes negros/as relatarem que querem ser brancos/as, que não gostam do seu cabelo, da sua cor, do nariz, da boca, que se acham menos inteligentes e que não sentem bem com seu corpo. 

Eu lembro que durante meu ensino fundamental e médio, eu não me relacionei afetivo-sexualmente com ninguém, achava que nenhuma menina se interessaria por mim. Um jovem preto e gordo que todos os dias recebia provas de que não era bonito, que estava fora do padrão, que não era do tipo que as meninas olhavam e nem se sentia merecedor de afetividades e desejos amorosos.

Lembro da tensão de ter que passar na catraca do ônibus, eu tinha que esperar o veículo frear para que eu pudesse passar, pois sem o impulso da freada, eu poderia ficar preso na catraca (como já aconteceu). Além disso, muitas vezes eu permanecia em pé (mesmo com assentos vazios no ônibus) para não passar pelo constrangimento de perceber todos me olharem com medo de que pudesse sentar no assento ao lado deles. Todos os processos desse pequeno relato deixaram inúmeras marcas subjetivas em mim, e certamente, ainda possuem influência na forma em que eu me vejo e na construção da minha autoestima.

Ao compreender que estes atravessamentos são intensos e complexos, por quê deveria achar que apenas discursos positivos e individualizados resolveriam essas questões ou minimamente serviriam de acolhimento? Certamente, se eu me queixasse a alguém sobre me achar feio por conta dos meus traços e do peso excessivo na adolescência, não gostaria de ouvir que eu sou lindo, que meus traços são de reis africanos ou que deveria amar meu corpo. Neste caso, esse discurso me remeteria tanto a ideia de que eu não deveria sofrer por isso, quanto o sentimento de culpa por me sentir mal.

Logo, a culpa de pensar assim seria atribuída a mim e não à uma estrutura racista e gordofóbica que produz discriminação e violência aos nossos corpos. Quando se desresponsabiliza a influência das violências estruturais no indivíduo, é proposto que o problema está no seu mindset, na sua mente fraca ou na sua forma negativa de ver o mundo. Construindo muitas vezes um ciclo de culpabilização individual e social, provocando a ideia de que é necessário se combater apenas o/a opressor/a, e não as suas estruturas.

Neste sentido, Emicida trouxe na última segunda-feira, 27, no programa Roda Viva uma contribuição importante para a construção coletiva no combate às opressões em seus contextos sociais. No último bloco, o Rapper afirma: “Não é só eu falar para minha filha que o cabelo dela é bonito, eu preciso participar da vida escolar dela de maneira a diretora, a professora terem a percepção de que elas não podem traumatizar minha filha com relação ao cabelo dela e nem permitir que isso aconteça”.

É evidente a importância de construir identidades positivas sobre nossa estética, mas não é só isso, precisamos intervir nos contextos sociais, nas instituições e nas políticas públicas. É necessário causar uma fissura nas estruturas, para que as diversas violências sejam combatidas nas instituições que regulam as relações sociais. A luta sempre foi sobre nós.

Foto de capa: Divulgação/Pexels.

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