Esses dias em casa estava deitado com a mulher que eu amo Denise Sá (mais conhecida como pretinha). Cada um resolvendo alguma situação no celular. E então, ela começa a se queixar de dor na barriga causada pela cólica menstrual. Logo após a queixa, eu comecei a buscar na internet algum método não-medicamentoso para aliviar as dores dela (já que ela não gosta de tomar remédios).
Vi em um site de saúde para mulheres que colocar uma compressa quente na região mais baixa do abdômen ajudava a aliviar as dores da cólica. Assim, fui esquentar a água para poder fazer uma compressa utilizando o que tinha em casa. Já na cozinha, tive a ideia de fazer um jantar e colocar na mesa do notebook, como se fosse um “jantar na cama”, uma releitura do famoso “café da manhã na cama”. Pensei que um jantar naquele momento poderia deixar ela mais contente e queria que ela recebesse meu amor. Geralmente, demonstro isso através do ato de cozinhar.
Desta forma, fui colocando o plano em prática, estava empolgado com a ideia de poder fazer uma comida gostosa para ela e auxiliar no alívio da dor que estava sentindo. Fiquei pensando no que faria para ela comer, do que ela gostava, em qual prato eu iria colocar os alimentos, qual bebida iria preparar, qual fruta eu cortaria para que fosse a entrada da janta… E ali, me perdi em um sentimento potente de cuidado, amor, alegria, entusiasmo, carinho e companheirismo. Sentimentos esses que alimentaram a alma naquele momento e me fez refletir que ali não era só ela que estava sendo cuidada, pois cuidar dela era também uma forma de cuidar de mim.
Naquela semana, eu tinha todos os motivos para estar cheio de ódio do mundo, pois ser um homem preto que compreende o seu lugar na sociedade patriarcal e racista me coloca também no lugar do ódio. Não que o ódio seja um sentimento essencialmente ruim, pois quando se canaliza o ódio para a movimentação política e criação, ele se torna um sentimento potente e transformador. A questão é que às vezes esse ódio corrói e inunda a alma de sentimentos que rasgam o peito e causam dor. E o pior é que sempre há motivos para odiar.
Muitas vezes sinto que não há muitos momentos para outros sentimentos além da raiva, da tristeza e do ódio, pois é a polícia que te para, é a arma na cara, a notícia que escancara, o nó na garganta, o seu amigo cheio de bala, as inúmeras cobranças, a apreensão de bicicleta, o medo do futuro. Mais de 500 mil mortos; o projeto genocida em curso, a gestão da pandemia do Covid-19 que nos faz morrer, o grito da criança que não pôde nascer, o meu povo desacreditando no amor e tantas outras coisas que ainda doem tipo a morte do meu avô.
São tantos motivos para odiar e, naquele momento em que preparava a compressa quente e o jantar na cama, eu estava amando. Não é à toa que o amor preto é revolucionário, pois ele te dá a expectativa de poder viver e se sentir feliz, apesar da política de morte e da tristeza. Lembro de uma entrevista do médico neurologista e psiquiatra Sigmund Freud (1856-1939) na qual é perguntado a ele sobre qual seria o momento de encerrar o trabalho de análise e, então, ele responde algo do tipo: quando o analisando readquire a capacidade de amar. Essa resposta traz a dimensão do amor enquanto caminho para o cuidado de si e a transformação, e tenho que concordar com o Freud, a capacidade de amar nos desloca para campos de potência e de olhar para dentro que nem podemos imaginar.
Sendo o cuidado a prática do amor, eu considero que este é um caminho importante para que eu possa me sentir melhor nesse ambiente tão hostil para mim e para grande parte da população negra. Sei que não é um caminho tão simples, pois o amor e cuidado que, historicamente nos foi apresentado enquanto povo negro em diáspora, se deu a partir de uma lógica colonial e perversa na qual ainda reproduzimos com os nossos. Mas aqui quero dizer que o amor, o cuidado e o afeto são caminhos possíveis para nós, apesar de parecer que não. E aqui não quero convencer quem não acredita no amor, pois sei que há muitos motivos para não acreditar. Mas aqui quero mostrar que é possível e que além de ter pretos e pretas se amando como diz Rincón Sapiência, existem pretos e pretas falando de amor.
Foto de capa: @alyssasieb/Nappy.co.
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Psicólogo e Especialista em Saúde Mental e Atenção Básica pela Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública (EBMSP). É pós-graduado na especialização em Direito Humanos, Saúde e Racismos pela Fiocruz. Homem cis preto de Salvador (BA) que gosta de compor histórias e sentimentos. Já atuou profissionalmente na política de assistência social junto à população em situação de rua, na área da saúde mental, clínica psicológica e garantia dos direitos da criança e adolescente em contexto de vulnerabilidade. Escreve e se interessa por temas relacionados à saúde mental da população negra, masculinidades negras, relações não-monogâmicas, relações raciais e política.