Onde estão os negros do Nordeste dentro das esquerdas nacionais? Essa pergunta tem ecoado de maneira bastante insistente na minha cabeça recentemente. Uma reflexão semelhante, mas de outra ordem, sobre as fronteiras do movimento negro brasileiro também tem sido feita por muitas pessoas de fora do eixo sul-sudeste. Foi, aliás, em decorrência desse questionamento que nasceu o movimento pela criação de um “Black Twitter Nordestino”. Mas não é esse o tema do texto. Quem fala sobre isso é a Stephany, nesse ótimo artigo também disponível aqui no Negrê.
No dia 24 de junho, o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva se reuniu “com lideranças negras para discutir a luta por igualdade no Brasil”. Era o que dizia a manchete do site do Comitê Lula Livre. A reunião, realizada virtualmente, contou com a presença de professores, advogados, artistas, influenciadores e militantes negros. Participaram 11 pessoas no total, além do ex-presidente, todas do Sudeste e do Sul, com exceção da cantora Doralyce, que vive no Rio, mas é natural de Olinda-PE.
Não pude deixar de me perguntar, essencialmente, três coisas: não há lideranças negras no Nordeste? Ainda cabe em algum lugar essa perspectiva de que as soluções para os problemas do país podem ser todas pensadas pela menor parcela do nosso território? Por que as esquerdas brasileiras adoram falar do Nordeste para elogiar e agradecer pela sua importância na resistência ao autoritarismo, mas seguem se recusando a incluir a escuta à nossa região como parte de seus programas internos?
Bem, a resposta ao primeiro questionamento é uma negativa evidente. Tanto no passado como no presente, o Nordeste é atravessado pela potência de pretos e pretas com forte tradição de resistência e contribuição — quando não liderança — na luta. Do quilombo de Dandara e Zumbi, o maior entre muitos outros, em Pernambuco, à Preta Simoa e Dragão do Mar, no Ceará, a história do Nordeste pode ser contada como uma história de resistência negra. Hoje, temos um universo de lideranças quilombolas e de terreiros, espalhadas por toda a região Nordeste, de intelectuais pretos, que estudam com uma infeliz proximidade as formas como o racismo produz a realidade nordestina e dentro dela se manifesta, e uma juventude preta muito ativa nos centros urbanos.
Quanto à clara xenofobia que constitui os processos brasileiros de elaboração dos projetos políticos nacionais, decepciona que ainda aconteça, mesmo não sendo em nada surpreendente. Muito se fala sobre o quanto o nosso país é diverso e múltiplo, não só em manifestações culturais, mas também em realidades. O racismo e a desigualdade são vividos de maneiras tão diversas quanto é extenso o nosso território nacional. Como ainda é possível que um grupo, composto somente por pessoas de uma pequena região do Brasil, seja visto como suficientemente representativo para discutir as soluções para o problema da desigualdade de um país muito maior e diverso do que esse grupo sequer é capaz de conceber?
Particularmente, embora esse episódio se relacione muito intimamente com a forma como o Partido dos Trabalhadores (PT) constituiu sua hegemonia entre as esquerdas brasileiras, eu creio que esse problema seja geral nos quadros políticos do Brasil. Os partidos ditos de esquerda não são (ou são muito pouco) espaços reais de escuta popular. Há muito que a esquerda não fala mais a língua da quebrada, como sabiamente alertou Mano Brown nas últimas eleições. Para mim, não é possível olhar com muita gentileza para uma esquerda que abre a boca para agradecer ao Nordeste pelo seu peso na resistência ao autoritarismo e a outras mazelas políticas do país, mas imediatamente fecha os ouvidos para esse mesmo Nordeste no momento de pensar e construir seus projetos de/para o país.
Bastariam alguns minutos de atenção ao Preto Zezé, cearense presidente da Central Única de Favelas (CUFA), para perceber que o primeiro passo para a construção de um projeto nacional para o povo é chamar o povo para participar do pensamento desse projeto; pois um projeto nacional que se diz inclusivo mas que não é inclusivo no seu processo de construção já começa morto. O PT — assim como a maior parte do restante das esquerdas brasileiras — sabe muito bem que esse povo está no Nordeste. E sabe também que esse povo é preto e favelado. O que falta para nos incluírem na construção de seus projetos? Onde ficam o Nordeste e seus pretos entre as corridas eleitorais? Não haverá Brasil para nós enquanto não houver escuta.
Foto de capa: Marília Castelli/Divulgação.
LEIA TAMBÉM: 25 de março no Ceará: entre esquecimentos
Historiador pela Universidade Federal do Ceará (UFC), atuando como professor de História. Tem experiência com Patrimônio Histórico e Cultural (SECULTFOR) e estuda trauma em literatura de testemunho na Ditadura Civil-Militar, racismo ambiental e necropolítica. Gosta de música, café e outras artes, tem interesse em temas relacionados à política e cultura e uma paixão inexplicável por aviões.