Durante alguns meses, eu tenho pensado sobre “o que é ser emocionado”, pois sempre me identifiquei e me posicionei enquanto um “homem emocionado”. Lembro de, geralmente, ouvir essa palavra em um tom depreciativo, como fosse algo ruim, voltado a pessoas que “amam demais”, que “sentem demais” e acaba por adquirir comportamentos amorosos que destoam da “fase da relação”, a exemplo, dar as mãos àquela pessoa que está saindo pela primeira vez.
Para mim, pessoas emocionadas são intensas, vivenciam o afeto, sentem e demostram para a outra pessoa o que sentem. São pessoas que não abrem mão dos seus sentimentos, e, para isso, passam por cima de convenções sociais, inseguranças e medos estruturadas pela monogamia. Sobretudo, são pessoas de coragem, que bancam uma posição de não se distanciar daquilo que sente e demonstram isso.
Me lembro que em um relacionamento que tive, percebi nos primeiros meses, que quando eu dizia: “Eu te adoro” vinha sempre um “Eu te amo” na cabeça. Comecei a pensar sobre isso e perceber que eu amava aquela pessoa.
Foi aí que comecei a pensar como iria falar isso para ela, e de forma automática, vieram as vozes das convenções sociais: “O relacionamento tem pouco tempo e você já ama?”, “E se ela não disser que me ama também?”, e se, e se e se. Ainda bem que esses pensamentos duraram pouco, pois foram atropelados por um poema, que se manifestou de forma linda, me distanciando do que seria “prudente”. Desta forma, no momento mais oportuno, eu recitei o poemas para ela no carro.
O “Eu também te amo” não veio de volta, e eu nem esperava isso na verdade; o que me deixou mais feliz foi ter expressado o que eu sentia, fui sincero comigo e com meus sentimentos. Portanto, fui emocionado. Eu me senti bem e acolhido no momento, meus sentimentos não foram menosprezados e nem cerceados. Não houve desconfiança do tipo: “Será que você me ama mesmo?”, “Não está muito cedo para isso?”, ou então: “Nossa, você sente demais!”.
A pessoa em questão trouxe como era para ela ouvir e falar eu te amo; e trouxe que seria um processo até ela, em algum momento, se sinta confortável para dizer. A palavra dita veio com o tempo, e bem antes da palavra, eu já sentia que havia amor. Isso foi o que me deixou tranquilo, pois amar, unilateralmente, não tem nenhuma relação com ser emocionade*.
Para quem é emocionado como eu, sabe a importância de exercer sua emoção de forma plena. Por vezes ouvimos que somos “bestas” ou que não deveríamos demostrar afeto no momento e na intensidade que queremos. Enquanto homem preto eu teria tudo para jogar o jogo dos afetos convenientes e convencionais, mas resolvi ser eu mesmo (e olha que não é nada fácil), mas eu sou um belíssimo emocionado.
Talvez esse seja um dos atos mais lindos e desafiadores que tenho tomado para mim. Por isso, hoje, não permaneço em lugares e/ou relações onde minha emoção não seja acolhida, cuidada e sentida.
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Sobre pessoas pretas emocionadas
Quando falo que ser emocionade* é um ato de coragem, não é só porque vivemos em uma estrutura monogâmica, mas também por ser um homem preto.
Apesar de termos referências de homens pretos que expressam o que sentem de forma afetuosa e intensa, a exemplo de Gilberto Gil, Djavan e Tim Maia; não podemos negar que o racismo é um fator de embrutecimento emocional. Viver em uma sociedade que quer nos ver mortos, presos ou deixados para morrer é violento e doloroso. Diante disso, muitos de nós recorremos ao recurso do evitar sentir, do endurecer ou virar especialista em esconder o que sentimos.
Assim não é diferente em relação às mulheres negras, que, a todo momento, são violentadas pela lógica patriarcal e racista. Quando se fala sobre relacionamentos amorosos-íntimos, não é difícil ouvir relatos de mulheres negras que passaram por enganações, violências, traição, preterimento e abuso.
Não é incomum em conversas com amigas minhas ouvir que pararam de acreditar no amor. Por mais que essa frase me cause dor (pois vejo o amor como potência de viver e resistir), ela é legítima e só elas sabem o que passaram e o que sentiram ou estão sentindo. Diante disso tudo, como ainda nós, pessoas negras, continuamos investindo no amor e ainda nos permitindo ser emocionades*?
De modo pessoal, eu diria que é uma tarefa difícil, porém pior seria fugir da forma como sinto. Quantas vezes achei que eu “sentia demais”? Quantas vezes achei que sentir da forma que sinto era errado? Quantas vezes pedi para que aquela dor fosse embora? Pois é, se despir das armaduras, inseguranças, medos e receios dentro de um relacionamento não é fácil, aceitar aquilo que afeta e deixar mexer por dentro é, de fato, desafiador.
E olha que eu nem falei sobre pessoas que se aproveitam do peito aberto e afetuoso de alguém para cravar uma espada nele e deixar sangrar! Por isso, é importante saber que aquele espaço é seguro para se vulnerabilizar. Acho que todo emocionade* vai aprendendo isso com o tempo, pois o afeto que causa dor também é sentido de forma intensa. Hoje, eu consigo ter um maior cuidado comigo neste sentido; não é que eu vou deixar o peito aberto, mas onde e com quem poderei fazer isso.
Existem pessoas que vão aproveitar sim da nossa vulnerabilidade, mesmo com todo cuidado (até porque as pessoas dão o que têm), e tem também aquelas que não vão saber lidar com isso. E está tudo bem, ninguém é obrigado a nada. Hoje, eu busco não chamar as pessoas de “frias” e pouco afetuosas só porque não tem uma forma parecida com a minha de sentir; pois pode ser aquela pessoa embrutecida nos sentimentos, que se identifica dessa forma no sentir, que não consegue demostrar seu afeto de outra forma ou por várias outras questões possíveis. Eu prefiro dizer que aquele afeto não me contempla, que busco outras afetividades e que ficarei onde me sinto bem.
Endurecimento e pesos
Tem pessoas negras que a armadura está tão pesada, que qualquer sinal de cuidado e afeto assusta. E eu, como um bom emocionado, já assustei algumas pessoas, a exemplo de uma mulher que quando eu peguei na sua mão, ela perguntou se eu fazia isso com as minhas amigas também. A minha interpretação foi de que talvez aquele gesto seria “demais” para um segundo encontro, já que não havíamos desenvolvido ainda um nível de relacionamento que “comportasse” andar de mãos dadas.
Lembro que, diante a situação, eu respondi que eu pego na mão das pessoas que sinto carinho e vontade de fazer isso. Sejam amigos, amigas, minha tia, minha mãe, meu pai, enfim. É muito complexo quando a gente está diante dessas defesas também, pois, muitas das vezes, nem é sobre nós, mas na hora acaba sendo. Talvez, em outro momento, eu poderia ter pensado: “O que eu fiz de errado?”. Mas, na hora, somente pensei comigo mesmo: “Eita, que armadura pesada!”.
Algo que aprendi sendo uma pessoa emocionada é que tenho o direto de me sentir bem nas relações e de não ter medo de ser e sentir. Onde minha emoção não é acolhida eu não me demoro. E aqui, eu não quero dizer que o outro é culpado, e sim que sou eu que não tenho culpa de sentir do jeito que sinto.
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Pessoas emocionadas e monogamia
A monogamia, que pode ser caracterizada como um sistema de base cristã que organiza o estado, as políticas de afeto e as nossas subjetividades, tem como um dos seus pilares a relação afetiva-íntima única e exclusiva com seu/sua parceiro/a/e.
Diante disso, se cria paralelamente, um mercado de afetos no qual só cabe um amor na vida; no qual será escolhido a partir dos diversos fatores que flertam com comportamentos, estética, status sociais e condições financeiras que são valorizadas hegemonicamente pela sociedade.
Neste mercado, existem protocolos de como se expressar dentro das categorias amorosas que hoje vai de “conversante” até o “casados”. Um exemplo que eu queria trazer é sobre se relacionar com “ficante” que, dentro das hierarquias produzidas pela monogamia, é uma categoria frágil. Digamos que ela vem antes do namoro e a diferença é que, no namoro, tem um grau de compromisso maior a partir da exclusividade afetiva-íntima.
Comportamentos como pegar na mão, dar flores, conhecer a família e dizer que ama são vistas, em muitos casos, como demonstrações amorosas da relação entre namorados. Logo, se você fizer algo desse tipo com o/a/e “ficante”, já é um sinal que está sendo emocionado e/ou quer avançar na relação. Porém, em muitos casos, essas demonstrações de afeto acontecem porque a pessoa sente vontade, apenas por isso (oque já é muito). Às vezes, é difícil pra mim imaginar que muita gente deixa de demonstrar afeto da forma que sente por conta dessas convenções da afetividade.
É diante dessas análises de como se comportar afetivamente para o outro que entram os joguinhos nos relacionamentos, que produz movimentos organizados e orquestrados para passar informações com objetivo de conquistar, aproximar, ou dizer que não gostou e por aí vai. Tudo na base de como vai chegar para o outro e não de como realmente se sente.
Imagino que vocês também conhecem pessoas que deixam de se expressar da forma que gostariam para participar desses joguinhos relacionais. Já vi gente que segue regras do tipo: “Só ligar depois que a pessoa ligar” ou então “Responder no whatsapp 1h depois” para não parecer emocionado. Como assim, gente? Como isso não pode ser problemático, sabe? Mas está tão naturalizado que as pessoas apenas seguem o fluxo sem pensar muito sobre o porquê. Já encontrei pessoas que se incomodam com os jogos, mas que continuam fazendo, pois acham que esse é o única forma de se relacionar.
Conversando com minha amiga Bruninha (@bruna_depaulla), ela disse uma coisa tão linda pra mim: “Eu acho que eu nunca recebi tanto carinho quanto eu recebo hoje como uma pessoa não-monogâmica, sério, e também porque parei de ter medo de demonstrar carinho…”.
Ao olhar um pouco pra mim, percebo que tenho uma grande potência na mão-monogamia, pois é a forma de olhar e me relacionar com o mundo e os afetos no qual tenho me sentido acolhido. Sinto que não preciso me preocupar com as disputas do mercado relacional; as disputas não são necessárias em um ambiente em que se pode amar mais de uma pessoa. Em relações, através das quais, posso me emocionar quando sinto que devo; e não me restringir ao compromisso exclusivo, que é mais uma convenção, porque o desejo não está nem aí pra isso. Ele vai.
*Uso da linguagem inclusiva: o Negrê opta por usar o “e” para neutralizar o gênero da palavra e incluir àqueles que não se identificam com feminino ou masculino.
Foto de capa: Andres Ayrton/Pexels.
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Psicólogo e Especialista em Saúde Mental e Atenção Básica pela Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública (EBMSP). É pós-graduado na especialização em Direito Humanos, Saúde e Racismos pela Fiocruz. Homem cis preto de Salvador (BA) que gosta de compor histórias e sentimentos. Já atuou profissionalmente na política de assistência social junto à população em situação de rua, na área da saúde mental, clínica psicológica e garantia dos direitos da criança e adolescente em contexto de vulnerabilidade. Escreve e se interessa por temas relacionados à saúde mental da população negra, masculinidades negras, relações não-monogâmicas, relações raciais e política.