Acho que muitos aqui já tiveram contato com o caso de Vitor Augusto Marcus de Oliveira, um jovem preto e gordo (que pesava 200 quilos) e que, aos 25 anos, foi deixado para morrer em frente a um hospital em São Paulo (SP). Segundo as notícias, seis hospitais negaram a vaga para o jovem, alegando superlotação ou que não tinham condições estruturais de receber Vitor Marcus.
Como um jovem, imagino o tanto de sonhos e planos que ele tinha, mas que foram ceifados por uma estrutura racista e gordofóbica. Eu estava tentando ficar longe dessa notícia porque me dói muito, mas acabei assistindo o vídeo da mãe de Vitor chorando e alegando ter lixo no caixão do seu filho.
Sim, colocaram o corpo de Vitor junto com lixo, é isso mesmo, aquilo que já foi simbólico se torna concreto. Um corpo preto e gordo geralmente é visto desta forma; um corpo lixo, um corpo que não merece ser cuidado, um corpo nojento e desumanizado.
Para mim, esse olhar desumanizado da medicina sobre o meu corpo sempre me afetou muito. Por ter diversos problemas de saúde e recentemente ter passado por quatro internações em hospitais, as lembranças ainda estão bem recentes.
Lembro que no hospital tiveram que trocar a medicação algumas vezes porque os remédios não atestavam a eficácia no meu corpo de 150kg na época. Um outro detalhe muito forte é que, quando se é gordo em um hospital, todo o prejuízo em saúde será por conta do seu corpo e a afirmação de que preciso emagrecer.
O grande problema nem é a informação sobre como o peso pode interferir na saúde, mas sim a frequência que isso é falado em um olhar de julgamento. Como se eu não emagrecesse porque não quisesse, como tivesse preguiça ou como eu estivesse fazendo mal para mim porque havia chegado até aquele peso.
Inclusive, na terceira vez em que fiquei internado, eu tinha emagrecido 5 quilos, mas advinha? O discurso de emagrecer e que precisava de dieta veio à tona novamente, ninguém foi capaz de me perguntar como estava minha alimentação ou se já estava em processo de emagrecimento, nada!
Um corpo gordo é um corpo gordo, independente do que você esteja fazendo para cuidar dele ou tenha uma boa condição de saúde, ele será visto sempre como um corpo doente.
A pessoa gorda é vista com tanto desprezo que, quando o emagrecimento vem devido a uma virose, cirurgia ou adoecimento psíquico, o emagrecimento vem como algo “positivo”. Ou seja, o importante é não ser gordo, a saúde se pensa depois, o cuidado depois, a possibilidade de morte depois. É tudo para depois!
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Vale tudo para emagrecer?
Na minha terceira internação, estava assistindo na televisão o caso de Dave Smith, 72, um britânico que testou 43 vezes positivo para o vírus da Covid-19, seguidas vezes. Nesse caso, o vírus sofreu diversas mutações durante um ano e por pouco o britânico vinha a falecer; ele já estava fraco e tinha perdido 60 quilos nesse processo. Lembro do relato de sua esposa, no qual trazia a dor, o sofrimento e o medo de perder seu marido.
No início da reportagem sobre o caso, a enfermeira entrou no leito em que estava e acompanhou a situação. Quando terminou, ela falou: “Poxa, que situação, mas pelo menos ele emagreceu, né?”. Eu parei, respirei e respondi: “Eu não gostaria de passar por essa situação para poder emagrecer, ele quase morreu!”.
No momento, eu percebi aquela tensão e ela respondeu: “É verdade, né?”. E ali, o assunto encerrou, mas a violência já tinha acontecido. Entendi ali que valia tudo pela magreza, até adoecer e ficar internado. Essa situação foi muito pesada, senti como se eu fosse um monstro, sabe? Que valia tudo para não ter o meu corpo.
A violência que sofri todos os dias em que estive nos hospitais não está escrito no gibi. A minha condição e a condição de muitas pessoas negras e gordas são invisibilizadas e menosprezadas.
Pouco se fala sobre as macas que não suportam nosso peso, sobre não poder utilizar certos remédios por não terem estudos sobre os testes desse remédio em pessoas gordas. E ainda sobre a violência da equipe médica diante de corpos gordos.
Me tornei um corpo-trauma, que quase recebeu remédio para pressão que seria para outro paciente. Não tenha dúvidas que meu peso influenciou na ideia de que eu poderia estar com pressão alta, já que sou gordo. A sorte foi que eu sempre checo todos os medicamentos que vou tomar e pergunto sobre todos eles, caso não tenha uma resposta satisfatória eu pesquiso no Google.
Os médicos sempre parecem surpresos em saber que não tenho pressão alta nem diabetes. Muitas vezes, meu corpo-lixo era deixado sem alimento, sem informações e explicações sobre mudança de medicamento e procedimentos médicos.
Só porque eu não aceitava qualquer medicamento e questionava sobre os procedimentos que fariam NO MEU CORPO, me diagnosticaram com transtorno de ansiedade, acreditem. O hospital me faz passar por tensões, medos e erros e eu tenho que ficar dócil? Não posso questionar nem buscar meus direitos?
Poderia e pode ser eu
O que me dói mais nessa história é que eu posso ser um Vitor Marcus em algum momento, talvez por isso escreva esse texto com tanta dor e tenha demorado para publicar. Em todos os momentos em que li e assistir vídeos sobre o caso eu pensei “poderia ser eu”, e essa semelhança é que me mata.
Imaginei minha mãe revoltada e chorando porque me mataram. É assim que eu vejo, uma morte que começa lá na infância, na qual aprendemos que o corpo gordo é chacota, sinônimo de doença e feiura.
Quando os apelidos vêm na tentativa de desmoralizar e desumanizar por ser gordo, essas marcam ficam; e cabe a cada um carregar esse trauma ou lidar da melhor forma que consegue. Quando é gordo e preto aí que o bicho pega, porque nem a humanidade nos sobra.
Como se deixa alguém sem atendimento de emergência por falta de equipamentos que possam suprir as necessidades básicas de transportes de uma pessoa? Como pensar em uma medicina que não leva em questão a diversidade de corpos? Você, médico e médica, já pensou o que aconteceria se Vitor estivesse parado na porta do hospital que você trabalha? O que vocês têm feito para mudar essa realidade? Eu questiono.
Espero que esse caso do Vitor Augusto Marcus de Oliveira seja julgado da forma correta e que os responsáveis sejam punidos! O corpo gordo merece ser cuidado e respeitado; para que não haja situações como a de Vitor, que o Orum o receba da melhor forma e que esteja em paz.
Foto de capa: Armin Rimoldi/Pexels.
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Formado em Psicologia e Especialista em Saúde Mental e Atenção Básica pela Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública (EBMSP). É pós-graduado na especialização em Direito Humanos, Saúde e Racismos pela Fiocruz. Homem cis preto de Salvador (BA) que gosta de compor histórias e sentimentos. Já atuou profissionalmente na política de assistência social junto à população em situação de rua, na área da saúde mental, clínica psicológica e garantia dos direitos da criança e adolescente em contexto de vulnerabilidade. Escreve e se interessa por temas relacionados à saúde mental da população negra, masculinidades negras, relações não-monogâmicas, relações raciais e política.