Colunas Covid-19

Covid-19, luto e outras questões

Esse texto, penso, vai ser um devaneio particular e uma tentativa minha de elaborar algumas coisas. Pode ser que não faça muito sentido, que pareça vago ou que eu não esteja falando nada com nada. Sinceramente? Eu não acho que precise ser de outra forma.

Acho que tem mais ou menos um mês que não escrevo aqui. Lembro de minha sétima coluna neste espaço, “A cor dos 100 mil mortos: Covid-19 e a população negra”, onde discuti um pouco sobre como a necropolítica brasileira tem lançado mão de uma pandemia global para matar e deixar morrer corpos negros. Cerca de um mês e meio após a publicação desse texto, a realidade bateu à minha porta: perdi um primo para a Covid-19.

Samuel era três anos mais velho que eu, foi-se alguns dias depois de comemorar, por vídeo-chamada mediada pela assistente social da UTI do Hospital Universitário de Fortaleza, seu aniversário de 26 anos. Depois de crescido, eu deixei de ser tão próximo da porção materna da minha família, mas enquanto criança eu cresci naquele ambiente, brincando com ele e com outros primos. Samuel e sua irmã, a quem chamamos carinhosamente de Laninha (pensando agora, acho que eu nem sei o nome dela; só conheço essa versão), são meus dois únicos primos negros por parte de mãe, visto que minha família materna é branca.

Antes de partir, ele passou alguns vários dias internado, mudando de um hospital para outro, de uma UTI para outra. Do lado de cá, a família toda muito apreensiva, angustiada e, sobretudo, incerta, pois ele melhorou e piorou algumas vezes até dar adeus. Acho curioso pensar que na sessão de terapia que tive dois dias antes da morte dele, o tema central da conversa com meu psicólogo foi esse: morte e luto.

Lembro de ter conversado com ele sobre como temos um costume não muito saudável de imaginar tudo como eterno, perene. É um paradoxo no mínimo peculiar que, mesmo dentro dessa liquidez moderna onde tudo é efêmero (desculpa pela breguice, não imaginei que fosse jogar um Bauman (1925-2017) assim do nada quando comecei a escrever esse texto), a gente ainda tenha tanta dificuldade em lidar com o fim das coisas. Nada é eterno. A gente sabe disso. Por que, então, a gente nunca encara o fim das coisas (e da vida) como pelo menos uma possibilidade?

No meio dessa conversa sobre a sazonalidade existencial, e sobretudo quando meu primo se foi, teve uma passagem especial da produção acadêmica do filósofo Achille Mbembe que se destacou e até me ajudou um pouco a lidar com tudo isso. O Mbembe escreve em “Crítica da Razão Negra” (e também fala em entrevista transcrita em “O fardo da raça”) que, na filosofia africana, o negro é um passante.

Eu não entendo muito de filosofia africana e esta também não é uma de minhas áreas de estudo, mas pensar a existência de corpos negros como uma existência de passagem me pareceu ajudar em termos de conforto. O Mbembe desenvolve a ideia de que o ser-negro no mundo sempre implica trânsito, movimento, passagem. Mais ainda, ele argumenta que o pensamento africano é um pensamento de travessia e circulação, um pensamento que habita vários mundos e várias formas de compreensão do mundo.

Ao mesmo tempo em que isso parece ser resultado ou ter alguma relação com a violência do capital, da qual a diáspora negra é uma de suas manifestações, também me soa como uma filosofia da sobrevivência em face dessas violências. Sem falar de luto (e, na realidade, falando de algo completamente diferente), o Mbembe me ajudou a me confortar e a confortar a minha família, a permitir, na minha forma de significar o luto, a coexistência do presente e do ausente.

Samuel se foi muito cedo, a passagem dele neste plano foi curta. Anteontem, fez um mês desde que ele partiu. Mais um dentre os tantos outros que compõem a infeliz estatística das mortes por coronavírus no Brasil, ele transformou um texto sobre dados em uma revolta particular. Nesse meu retorno ao Negrê, não me pareceria justo escrever sobre qualquer outra coisa. Sinto sua falta, primo. Todos sentimos daqui. Vou lembrar com carinho das suas risadas de cada história sem-pé-nem-cabeça do vô no churrasco do final do ano. Que sua passagem seja linda, onde quer que você esteja passando agora. Um abraço.

Em memória de: Wesley Samuel Rodrigues da Silva (1994-2020).

Foto de capa: Mike Labrum/Unsplash.

LEIA TAMBÉM: Algoritmos da repressão: a informatização do encarceramento em massa

Compartilhe: