Negra, nordestina e com raízes na Nigéria, país situado na parte Ocidental do continente africano. Rayssa Okoro, 24, é filha de uma mulher maranhense e um homem nigeriano, e nasceu em São Luís, no Maranhão. É recém-graduada em Medicina pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Em sua fala e no seu olhar, Rayssa, sem dúvidas, é uma mulher negra ancestral. Uma mulher negra que não está na medicina por acaso.
“No meio desse meu processo de descobrir e entender a minha identidade, eu tornei a minha profissão algo político”, é o que considera a médica negra. Hoje, trabalha com atenção básica em uma rede hospitalar, localizado no interior do estado maranhense em uma cidade chamada Itapecuru Mirim, a 120 quilômetros de São Luís.
Doutora Rayssa Okoro conversou com a equipe de reportagem do Negrê para a editoria Pretassa sobre seus ideais enquanto profissional negra na área da saúde, suas vontades com o seu ativismo político e a realidade do povo preto. Além disso, sobre o que é ser uma mulher negra, ocupando espaços de poder, existindo e resistindo como médica.
Negrê – Quando você se descobriu negra? Como foi esse processo?
Rayssa Okoro – Então, eu lembro de sempre perceber que eu era diferente. Eu cresci numa família grande, mas os únicos negros eram eu, meu pai, que é nigeriano, e minha irmã. Convivi a vida toda com a família da minha mãe que é muito branca. Eles sempre me colocavam como morena. Eu era excluída de vários espaços na família, mas não entendia… E eu aceitava isso e levava pra vida. Também estudei numa escola particular daqui, com muita gente branca. Então, eu sabia que era diferente, sabe? Eu era tratada diferente, não tinha amigos, era isolada, escapava da realidade estudando muito e lendo muito, ficando todos os horários livres na biblioteca etc. Só que não entendia direito o porquê disso tudo. Eu considero que entrei nesse processo de me descobrir e me entender como mulher preta, o que isso significava pra mim e pro mundo, na faculdade. Lá, no início, eu sofri muito racismo (aquele recreativo mesmo, ‘piadas’ pesadas de colegas de sala) e não entendia… depois, entrei em contato com o movimento estudantil, depois com o movimento negro… foi um processo longo, até eu chegar no lugar que eu tô agora. Deve ter demorado em torno de uns 4 anos até eu assumir com afinco, com certeza mesmo a minha posição político-social, reivindindicar minha identidade etc. E foi muito, muito doloroso mesmo. Eu considero que foi um dos períodos mais dolorosos da minha vida, várias vezes eu pensei que não iria conseguir chegar onde eu tô agora. Fiquei sozinha durante esse percurso inteiro, o que tornou o processo mais doloroso ainda.
N – Nós sabemos que a Medicina é uma profissão bastante elitizada ainda e devemos ocupar esses lugares também. Por quê você escolheu a Medicina?
R.O. – Então, eu não escolhi hahaha… eu venho de uma família pobre em ascensão. Não sou da primeira geração a entrar na academia, mas sou da segunda. Minha mãe veio de uma família bem pobre do interior do Maranhão, meu pai de um contexto também similar na Nigéria. Então, eles deram tudo de si pra que as filhas deles estudassem nas melhores escolas, tivessem a melhor educação possível pra poder subir na vida. E pra eles subir na vida significa academia e acessar profissões de prestígio. Então, eu ouvi a vida toda que filho de pobre tem que ser médico. E foi assim que eu entrei haha.
Então eu não entrei com um objetivo político, sabe? Eu entrei inclusive sem gostar muito do curso. Essa narrativa de amor pela medicina é muito mentirosa. Pelo menos pela minha vivência, eu posso dizer isso. Geralmente, se entra no curso com objetivos econômicos e sociais. E é isso. Acontece que no meio desse meu processo de descobrir e entender a minha identidade, eu tornei a minha profissão algo político. Um espaço de militância e de atuação muito importante pra quem quer lutar pela população negra. E foi isso que me fez permanecer no curso. Entendo a medicina como um espaço político muito importante de ser ocupado. Entendo o quanto eu posso fazer pelo meu povo sendo médica, por essa hiper valorização de profissionais médicos que ainda tem, eu consigo usar disso pra fazer algo bom, sabe?
Pra além da importância de eu ser uma médica negra, o que é muito importante sim, o cuidado de pessoas pretas sofre impacto direto da cor da pessoa que cuida delas. É muito importante, pra mim, ter esse espaço de atuação. Eu posso cuidar, ensinar, posso mudar e contribuir na saúde do meu povo, sabe? E isso virou meu objetivo de vida, é o que me guia hoje.
N – O que significa pra você ser médica negra?
R.O. – Acho que eu até falei um pouco lá em cima. Eu vejo como uma posição política social muito importante, sabe? Tem a questão da representatividade, ocupar espaços de poder etc. Mas, pra mim, isso não tem um papel tão central, sabe? Não é o meu foco, apesar de saber da importância. Eu acho que aqui eu acesso muitos recursos que me permitem crescer e atingir meus objetivos, que são relacionados a conseguir ajudar o meu povo, entender, estudar sobre etc. E obviamente, é maravilhoso poder incomodar a branquitude, é incrível como uma mulher preta nesse lugar de médica incomoda.
N – Como médica e negra, de que forma você pretende impactar e melhorar a vida da população negra?
R.O. – Acho que não sair dessa trajetória de estudar e tentar entender os processos que definem a vida/saúde da população negra é o primeiro passo. Então isso envolve não estudar apenas medicina, que já é muita coisa, mas se aprofundar na construção social do país, nas condições da nossa população, entender os comos, os porquês… porque só assim eu posso tentar intervir de uma forma mais eficaz. E a partir daí, atentar pra isso. Eu quero me manter trabalhando no SUS. Não me vejo atuando em outro espaço. No SUS, eu atendo a população negra, em sua maioria. Eu entendo que se eu aprender a cuidar bem, a oferecer cuidado em saúde (na ampla definição dessa expressão) pra população preta, eu consigo impactar positivamente, sabe? Seja oferecendo cuidado, escuta, ou educando e tratando de doenças objetivamente.
N – Com o seu ativismo e suas vivências enquanto médica negra dentro da Medicina, como propor, então, uma medicina inclusiva para a população preta dentro da área que você atuar e contribuir para o nosso povo?
R.O. – Eu acho que medicina inclusiva quer dizer cuidado. Não gosto muito desse termo porque pode pressupor que eu tô tentando incluir algo que não estava lá antes. Mas tem um porém. A medicina veio de África. Saúde não é um ‘bem’ de um grupo específico. Saúde é autonomia, sabe. É ter capacidade e condições de viver. Coisa que o povo preto dificilmente faz. A gente se acostumou a sobreviver. Saúde é viver bem. Se eu sou médica, me comprometo a ofertar cuidado pra quem precisa. E cuidado é algo complexo. Significa que pra ofertar cuidado pra um grupo, eu preciso entender tudo que serve de determinante pra saúde dele, pra vida dele. Por quê não consegue comer bem? Por quê não dorme bem? Por quê todos na família tem pressão alta? Por quê não toma os remédios? Isso tem raízes sociais, culturais, históricas, políticas. A medicina ocidental atual peca demais achando que um corpo funciona apenas de acordo com a fisiologia básica, sangue, ossos, órgãos. Não é assim, nunca foi. Se nós bebêssemos de fontes ancestrais saberíamos que nunca foi assim. Mas o Ocidente copia, adapta e deturpa conhecimentos, né?
Então, o que eu tento fazer e o que eu proponho como ponto de partida:
1) Oferecer ferramentas pro meu povo se emancipar. Tomar posse da sua própria saúde. Tento ajudar… acho que dizer que eu quero que eles aprendam comigo seria muita petulância até. Eu só tenho alguns conhecimentos mais técnicos. Mas tô disposta a ajudar. Pra que a gente possa se cuidar melhor, se alimentar melhor.
2) Não esquecer o que determina a nossa saúde. Isso significa estudar. Entender. Ler. A gente precisa disso pra poder cuidar bem. Entender racismo, determinantes sociais. Entender ancestralidade, religião, sofrimento psíquico. Tem muita coisa envolvida. Muita coisa mesmo pra aprender sempre.
3) E o mais básico: escutar. Escutar é exercício de empatia diário. Eu, como médica, recebo pessoas nos seus momentos de maior vulnerabilidade, na maioria das vezes. Quem é preto sabe que dificilmente é escutado. Principalmente quando tá em sofrimento. Escutar faz muita diferença.
O conhecimento técnico, obviamente é super importante. Eu preciso ser boa tecnicamente falando pra poder cuidar bem também. Mas essa não é a parte que me diferencia, sabe? Talvez não sejam propostas objetivas o suficiente pra montar um projeto ou algo assim. Hoje eu acredito que deva ser esse o caminho. Propostas, projetos, políticas específicas são importantes, mas são resultados disso tudo.
Jornalista profissional (nº 4270/CE), preocupada com questões raciais, e graduada pela Universidade de Fortaleza (Unifor). É Gestora de mídia e pessoas; Fundadora, Diretora Executiva (CEO) e Editora-chefe do Negrê, o primeiro portal de mídia negra nordestina do Brasil. É autora do livro-reportagem “Mutuê: relatos e vivências de racismo em Fortaleza” (2021). Em 2021, foi Coordenadora de Jornalismo da TV Unifor. Em 2022, foi indicada ao 16º Troféu Mulher Imprensa na categoria “Jornalista revelação – início de carreira”. Em 2023, foi indicada ao 17º Troféu Mulher Imprensa na categoria “Região Nordeste” e finalista no Prêmio + Admirados Jornalistas Negros e Negras da Imprensa Brasileira. Soma experiências internacionais na África do Sul, Angola, Argentina e Estados Unidos.