Há algum tempo, eu tenho me deparado com textos que apresentam o termo “preto de verdade”. E isso sempre me causou estranhamento. Primeiro, eu não acredito que exista uma forma de ser preto; gosto mais de pensar que somos plurais, que temos outros marcadores identitários que nos diferenciam entre nós, mas que nos tornam únicos e essencialmente diferentes.
A ideia de só existir uma forma de ser preto me angustia, me remete às caixinhas hermeticamente fechadas que precisamos nos enquadrar para sermos reconhecidos(as/es) enquanto pessoas pretas. Geralmente os textos que eu li, no qual o termo era implementado, caminhavam pelas montanhas frias do purismo, como isso fosse possível. Era comum encontrar que o purismo negro estaria em uma vivência pautada na cosmovisão, pensamento, comportamento e estética de África e um distanciamento completo por tudo que envolve pessoas brancas.
Assim, caso você se aproximasse de África estaria atingindo o purismo da negritude, mas caso se afastasse, você automaticamente se aproximaria da branquitude e não seria um negro de verdade. E aqui, é interessante apontar que essa ideia foge do conceito de pluriversalidade, definição cunhada pelo filósofo sul-africano Mogobe Bernard Ramos.
A pluriversalidade pode ser entendida como uma forma de olhar o mundo compreendendo a pluralidade de conhecimentos e de possibilidades, negando assim uma ideia da universalidade; que limita a existência e legitimidade de outras perspectivas, outras histórias e outros conhecimentos. Quando se constrói critérios que legitimam um único modelo de negritude, automaticamente esse modelo acaba deslegitimando outras formas de expressas e se identificar dentro da negritude.
Esse fato fica evidente em alguns textos que para legitimar um modelo de ser negro, acaba deslegitimando outras formas de expressar, pensar e performar a negritude. Lembro de uma discussão que tive com um homem preto de verdade, no qual ele ao apresentar esse discurso de um purismo negro; falava que só dava aula para pessoas negras, só comprava de pessoas negras, que, na sua vida, nada dependia de pessoas brancas e só legitimava os pensamentos dos ativistas políticos Malcolm X (1925-1965) e de Marcus Garvey (1887-1940).
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Pertencimento ou não
Eu até acho interessante essa ideia de viver em uma Wakanda isolada, porém isso é impossível. Infelizmente, vivemos em uma estrutura racista, no qual a branquitude reina e não nos vemos em diversos espaços estratégicos da sociedade. Um exemplo disso é quando entramos em uma emergência hospitalar. Já que é raro encontrar médicas e médicos negros, geralmente somos atendidos por profissionais brancos, e não é por isso que negamos o atendimento, pois precisamos daquele serviço.
Outro exemplo é quando compramos algo e pagamos o imposto sobre aquele valor, pois o montante arrecadado é gerido pelo gestor municipal, estadual e federal. E agora eu te pergunto: quantos prefeitos e governadores negros existem em nosso país? Muito pouco! Quando aquela família preta consegue adquirir um carro, por exemplo, o dinheiro vai para a branquitude, dona das grandes marcas automotivas pelo Brasil e pelo mundo.
Será que comprar um carro, fazer compras e/ou ser atendido(a) em alguma emergência hospitalar por um médico(a) branco(a) tornaria as pessoas negras um povo menos negro? E aqui, eu não estou dizendo que o movimento de consumir serviços e produtos de empreendedores(as) negros(as) não seja importante, inclusive considero necessário. O problema é este falso purismo de dizer: “Eu não preciso de brancos pra nada” ou “Meu dinheiro só vai para pessoas negras”. Porque, na realidade, as questões raciais no Brasil são mais complexas e não são resolvidas com discursos simplistas nem puristas.
Muitas vezes, esse discurso purista é para dizer: “Viu aí? Sou mais negro que você!”, “Olha como eu sou um negro de verdade!”, “Olha como não preciso dos brancos para nada!”. Pois fica nítido nos textos em que li um tom de superioridade em relação aos negros que, segundo eles, não os são de verdade. Inclusive, a psicanálise pode oferecer ferramentas teóricas para aprofundarmos essa discussão, mas deixarei para um outro momento, já que ainda vou fechar a história da minha conversa com o homem preto que só dava aula para pessoas negras e etc.
É mais complexo do que se pensa
No final da conversa, o rapaz me pediu para seguir duas páginas do Instagram; uma vendia produtos culinários e a outra, vendia produtos da área em que ele atuava enquanto professor. Quando percebi esse movimento, eu indaguei: “Oxe, mas você usa o Instagram?” e ele, um pouco envergonhado, falou: “Uso sim”. Então, logo fui em cima da contradição: “Mas o Instagram é criado por um homem branco milionário estadunidense, certo? E você está gerando dinheiro para ele, inclusive”. Ele, mais um vez, ficou sem graça e falou algo que não consigo lembrar direito, mas era algo do tipo: “É o jeito” ou “Não tem o que fazer”.
No fim da conversa, todo aquele discurso purista de não necessitar de branco para nada e não sei o que foi por água abaixo. Isso mostra que esse discurso não se sustenta a partir da página dois, pois como já trouxe aqui, as relações raciais no Brasil são extremamente complexas, contraditórias e sofisticadas. Por isso, precisamos encarar ela de uma forma pluriversal, afetiva e acolhedora, já que vivemos em um mar de contradições sociais e tentamos remar contra a maré, estando exatamente na maré.
É necessário acolhermos nossas contradições, pensar a partir do chão em que a gente pisa e termos cuidados com discursos puristas e empobrecidos sobre as questões raciais e a negritude. Somo muitos, somos plurais e somos potente! Já estamos muito divididos para cairmos nessa ideia de medir quem é preto de verdade e quem não é, utilizando uma régua que exclui e deslegitima. Inclusive, depois fui excluído do Instagram do rapaz por trazer uma outra visão e debater sobre um post que ele fez.
Nada impede que discordemos politicamente entre nós, que optemos por escolher aqueles e aquelas no qual iremos caminhar. Mas dizer que o outro não presta ou que aquela pessoa não é preta por não concordar da forma que você vê o mundo, é cair em uma leitura limitada e empobrecida sobre a pluralidade e a potencialidade de se preto, preta ou prete.
Foto de capa: Cottonbro/Pexels.
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Formado em Psicologia e Especialista em Saúde Mental e Atenção Básica pela Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública (EBMSP). É pós-graduado na especialização em Direito Humanos, Saúde e Racismos pela Fiocruz. Homem cis preto de Salvador (BA) que gosta de compor histórias e sentimentos. Já atuou profissionalmente na política de assistência social junto à população em situação de rua, na área da saúde mental, clínica psicológica e garantia dos direitos da criança e adolescente em contexto de vulnerabilidade. Escreve e se interessa por temas relacionados à saúde mental da população negra, masculinidades negras, relações não-monogâmicas, relações raciais e política.