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Lar é onde o quadro do Che está

“— Pode não ser uma má ideia se eu nunca mais voltar para casa.”

Em sua música “Home is Where the Hatraded is” (Lar é onde está o ódio) o cantor e compositor afro-americano Gil Scott-Heron (1949-2011) fala de sua batalha contra o abuso de drogas e sobre os guetos estadunidenses no século XX.

Gil Scott-Heron (1949-2011). Foto: Neal Preston.

A ideia de que lar ou a casa onde se vive, é um ambiente sem segurança aflige não apenas as minorias no continente americano, mas também pobres e desfavorecidos em todo o mundo.

O imperialismo europeu e a colonização, alimentados pelo racismo científico, deixaram a maioria das nações não-europeias devastadas, e essas consequências são sentidas até hoje. Nas últimas décadas, a imigração talvez seja o resultado mais pungente dessas polítcas exploratórias. Cenário no qual muitos, como eu, saem de sua terra natal em busca de uma vida melhor em outro país.

Recentemente, administrei, um programa de orientação educacional para auxiliar adolescentes na inclusão dos mesmos no mercado de trabalho. A palestra era para jovens entre 14 e 18 anos, todos de origem imigrante em Melbourne (Austrália). Muitas vezes, ouvi histórias de famílias esmagadas pela incerteza e desesperadas para sair de seus países o mais rápido possível. Como eu no Brasil, eles dividiam pequenos espaços e pouca comida. Como eu, eles sabiam que partir era o único caminho. Lar, para essas pessoas, é onde tudo implode.

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Estrangeiro

Apesar de ser descendente de africanos, portugueses e indígenas, meu fenótipo africano ditou minha vida no Brasil para pior. O país, na forma de uma minoria raivosa e dominante de supremacia branca, garantiu que eu soubesse desde que nasci que eu não era bem-vindo.

Guido Melo em Copacabana, dezembro de 2022, dias antes de ir embora para a Austrália. Foto: Arquivo pessoal.

Quando me mudei para a Austrália, não possuía nenhum item de valor monetário. Trazia na mala poucas roupas, muita esperança e o ressentimento contra a elite da maior nação sul-americana. Trazia também algo de muito valor sentimental: um retrato de Ernesto Che Guevara (1928-1967), esculpido em madeira.

“Hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás!”, ou “Há que endurecer-se, mas sem jamais perder a ternura”, em tradução direta para o português. Essa foi a primeira frase que aprendi em espanhol, idioma que hoje incidentalmente falo fluentemente.

Eu achava que a língua era a minha morada, que o português era a minha casa. Minha pátria é a minha língua, é o que ouvia dizerem. A máxima do poeta português Luís de Camões (1524-1580) não funcionou para mim. Ser Brasileiro negro no exterior, geralmente é ser minoria. A não ser que sejamos do entreterimento ou serventes, apesar de falarmos portugues, somos persona non grata nos eventos “Brasileiros”.

A origem da imagem

Lembro-me de quando meu agora falecido pai trouxe a icônica imagem para casa pela primeira vez, por volta do ano de 1991. Foi comprada no famoso reduto de esquerda do Rio de Janeiro (RJ), o Largo da Carioca, estabelecido durante as décadas de 80 e 90. A imagem é uma ilustração clássica de Ernesto, com sua boina de lado e um olhar desafiador, visando ao horizonte. Naquela época, o quadro parecia gigante. Imagine você, o objeto tem apenas 50x60cm.

Guido Melo com o quadro de Che Guevara. Foto: Arquivo pessoal.

Assim que meu pai chegou do trabalho, colocou sua bolsa de couro marrom na mesa, pegou o martelo e a pendurou na sala de estar. Todos os dias após esse, ela estava lá imponente, um lembrete diário do que defendemos. Do que ele me ensinou a defender. A mensagem principal era que, às vezes, para conseguir o que queremos, devemos lutar por isso, mas sem jamais perder a ternura.

Mesmo com tudo isso, a casa da minha família era como muitas casas de pessoas pobres em todo o mundo: cheia de amor e carente de todo o resto, bagunçada e disfuncional. Como nas histórias dos estudantes de Melbourne, eu queria ir embora o mais rápido possível.

Quando saí do Brasil, temia pela minha vida. Posso dizer com segurança que, estatisticamente, não teria sobrevivido se tivesse ficado.

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Lar é onde o quadro do Che está

Como imigrante aqui, muitas vezes me perguntam quando irei “visitar minha casa”. O Brasil não é mais a minha casa. Faz tanto tempo que eu saí que hoje eu acho nunca me senti em casa no gigante lusófono sul-americano. Meu lugar é aqui, na Austrália, independentemente do que os outros possam pensar.

Casa para mim hoje é uma ideia. É um lugar para o coração, para a alma e para a mente.

Recentemente, me mudei para um apartamento. Depois de me afastar de um estilo de vida antigo e incompatível comigo, comecei de novo. Nesse recomeço, demorei para decidir onde organizar meus objetos pessoais, minhas roupas e meus tantos livros.

O quadro em novembro de 2022 no apartamento novo de Guido. Foto: Arquivo pessoal.

Só encontrei harmonia na nova residência quando decorei minha sala com o tal quadro, da mesma forma como fez meu pai há pouco mais de três décadas. Naquele momento, percebi que eu, como um bom filho que sou, estava seguindo seus passos. De muitas maneiras, seus valores humanos (de Che e de meu pai) estão representados nessa imagem de madeira.

Após todos esses anos, a imagem esculpida continua comigo. Onde ela estiver, esse será meu lar.

Foto de capa: Arquivo pessoal.

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