Há algumas semanas, eu fui convidada a falar um pouco sobre a minha carreira profissional. De imediato, me perguntei: tenho uma carreira? É interessante pensar sobre o quão não refletimos nossa trajetória, especialmente quando o ímpeto de determinação e o hábito de nos puxar sempre pra frente de nós mesmos impedem de ver onde estamos, de ver o caminho percorrido.
Foi um exercício muito importante perceber que eu transito entre atividades que me realizam de alguma forma e que por muito tempo foram consideradas por mim, e por outros, como ausência de foco.
Desde muito cedo, eu ouvi de pessoas próximas o quão eu era ambiciosa. E, para eles, isso era algo negativo. Não me conformar com o lugar que foi pensado socialmente pra mim era um problema. Também era muito comum ouvir comentários sobre “querer tudo”, no qual se referiam justamente a essa suposta falta de foco diante do desenvolvimento de habilidades para além da minha formação inicial, por exemplo.
Hoje consigo pensar nesses discursos como reflexo de um pensamento colonial, que cerceia o conhecimento e as habilidades. Grada Kilomba, em uma de suas palestras na 17ª Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP), lá em 2019; falou sobre a influência do colonialismo na vida acadêmica, que impõe a valorização do conhecimento num formato fálico e ascendente. É um projeto eurocêntrico, patriarcal e de cerceamento que tem como objetivo o controle do desenvolvimento de habilidades múltiplas.
Ao mesmo tempo, reconheço que o desenvolvimento de certas habilidades não foi me dado como escolha; assim como para grande parte de uma população preta que precisa dar conta de diversas funções para criar condições de sobrevivência. De qualquer forma, o intuito aqui é afirmar que não há demérito em não cumprir um caminho retilíneo projetado para que não nos encaixemos.
Na verdade, há um grande mérito em desempenhar diversas funções, mesmo quando fomos “condenadas a nascer já mortas, e a viver contra toda formação, no cerne oposto de toda formação” (Jota Mombaça, 2018).
Penso que existem várias formas de um ofício se manifestar em diferentes ocupações. A partir dessa reflexão, entendi que o meu ofício pode se cumprir de diferentes formas, e que não preciso me encaixar em caixas muitíssimo bem delimitadas para que esse ofício se cumpra. Interessante pensar que, na verdade, “querer tudo” pode ser uma expressão cunhada para limitar inserções e atuações em diversos espaços, especialmente pra nós, pessoas pretas.
Acostumados à não nos conformarmos, seguimos criando formas de desobediência: despertos e conscientes para querer, realizar e criar cada vez mais.
Referências
MOMBAÇA, Jota. Veio o tempo em que por todos os lados as luzes desta época foram acendidas. 2018. Disponível em: https://jotamombaca.com/texts-textos/veio-o-tempo/
Foto de capa: Pnw Production/Pexels.
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Mulher-preta-cearense, filha de Maria do Carmo. Assistente Social e mestra em Sociologia, ambos pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). É pesquisadora e especialista em Legislação Social, Políticas Públicas e Trabalho Social (Pótere Social). Encantada pela escrita e movida a expressar mundos através das palavras. Curiosa e pesquisadora, principalmente, nos seguintes temas: juventudes, raça, arte, violência, sistema socioeducativo e questão urbana. Cursa o Doutorado em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC).