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Os passos de uma mulher negra serão sempre questionados

Eu não preciso de muito para dizer isso pois algumas vivências me fazem concluir. Os passos de uma mulher negra são sempre questionados! Uma mulher negra tem uma capacidade duvidosa para aqueles que estão ao seu redor, observando sua existência. Não apenas observando e convivendo, mas desvalidando as ações desta mulher. Às vezes, me parece que a caminhada de uma mulher preta tem menos valor e é menos digna de celebração e valorização do que a de uma mulher branca.

Durante dois anos e seis meses, estive planejando uma mudança radical na minha vida que seria mudar de país. Uma decisão tão séria mas tão séria que fui convivendo durante esse tempo de quase três anos, no contexto de pandemia. Um planejamento que mudaria minha vida de uma forma radical e que me proporcionaria alcançar vários objetivos que eu tenho em meu projeto de vida. E me faria trilhar um caminho para alcançar vários outros caminhos que almejo. Esse era o grande plano quando decidi me mudar para a África do Sul.

Em 2020, quando estive aqui pela primeira vez, mesmo com todas as diferenças existentes entre o Brasil, pude me sentir em casa. Do outro lado do oceano, pude me sentir confortável. Fui acolhida na casa de um grande amigo brasileiro, conheci muitas pessoas, me familiarizei com o idioma, fiz contatos profissionais, construí pequenos laços… e pude perceber oportunidades e visar um futuro. Um destino que eu queria pra mim: morar no exterior. Uma decisão séria e difícil. Por vezes, também complexa.

Em março de 2020, a pandemia estourou e aí eu fiquei retida no país juntamente com mais de 500 brasileiros. Isso porque todos os voos foram cancelados e as fronteiras do país foram fechadas. Tivemos que esperar. Eles podiam estender meu visto, mas eu decidi voltar no voo de repatriação do governo brasileiro para nós, brasileiros, que estávamos presos. Vivenciei umas quase três semanas de Lockdown na África até voltar para o Brasil. E voltei. Chorando muito, mas voltei. Tive que erguer minha cabeça.

Eu sabia que era uma volta temporária ao meu país de origem porque eu ia organizar minha vida e, no máximo, em um ano depois (e vacinada), eu estaria de volta na África do Sul. E, obviamente, que não foi do jeito que planejei. Muitas acontecimentos encontraram minha vida e eu tive que lidar com eles. O lançamento do Negrê, a possibilidade de trabalhar como Au pair nos Estados Unidos, os freelas, as propostas de emprego (no qual recusei duas e a outra que aceitei foi para assumir o cargo de Coordenadora de Jornalismo da TV Unifor), o intercâmbio profissional nos EUA e tantos outros ocorridos. Enfim, muita vida para viver e que foi vivida.

O tempo foi passando… e eu fui acumulando diversas experiências, preenchendo e diversificando meu currículo. Sentia que dava orgulho e inspirava minha mãe, meus amigos e minhas amigas. Sentia (e sabia) que era capaz de fazer muito mais para além de uma imigração. E fiz. E construí uma trajetória feliz. Por vezes, sofrida e dolorida. Por vezes, desafiadora. Mas acima de tudo, gratificante. Esses meses de março de 2020 pra cá mostraram-me (e eu mostrei pra mim mesma também) o quão capaz eu sou. Não importa o que uma sociedade racista venha querer me dizer! Eu já não acredito mais.

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O direito ao recomeço e ao sonho

Sonhar e recomeçar. Essas duas palavras e ações caminharam comigo durante essa jornada em busca da minha imigração. Eu sempre falava dos motivos pelo qual decidi isso muito empolgada. E quando não recebia apoio, ouvia uma enxurrada de críticas e pré-julgamentos sobre a decisão (pessoal) que tomei pra minha vida. E que vinha de diversos lados diferentes, de várias pessoas que eu convivia e amava muito. Passei a me sentir encurralada e a me fechar um pouco.

O direito ao recomeço e ao sonho é um direito. É simples! Bem simples, puramente simples. E não deveria ser questionado o porquê nem nada. Mas os passos de uma mulher negra serão sempre questionados. Sempre alguém vai duvidar, diminuir, desfavorecer ou desmerecer. Sempre. E somente hoje, estando aqui na África do Sul novamente, que eu cheguei a esta conclusão.

Ouvia que queria voltar para correr atrás de homem, arranjar casamento, fazer prostituição, fugir de situações e pessoas do Brasil… enfim, eu ouvia e ainda ouço muito sobre a minha decisão. E apontamentos completamente desrespeitosos. Visões e juízos de valor que desvalidam a minha existência, história, trajetória e vivências enquanto mulher negra, independente, nordestina e agora imigrante…

Por que uma mulher negra brasileira não pode imigrar sem que os seus objetivos e propósitos não sejam ligados diretamente a um homem ou conseguir um casamento com um gringo? Veja o quanto há de problemático neste discurso. Pois quando sou ligada a esse tipo de objetivo, sou reduzida e limitada. E a minha jornada não se resume na busca de uma paixão ou um amor ou um casamento ou um visto de acompanhante de marido…

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Ir além é ser

Eu sei que eu sou muito além disso. Eu sou e vou além desse tipo de visão limitada construída sobre mim. Eu posso (e tenho) objetivos profissionais pois eu conheço o meu coração e os meus sonhos. Eu convivo, mostro e mostrei pra mim mesma a capacidade que tenho. E quando alguém me limita e me aponta essa visão comum e reduzida sobre uma mulher brasileira imigrante, essa pessoa pouco sabe do que sou capaz.

Após ter passado por diversas situações e ter ouvido discursos desagradáveis e equivocados ao meu respeito, fiquei refletindo e decidi vim aqui escrever. Não podia ficar convivendo com a angústia e a raiva sozinha. Precisava expressar isso para o mundo! As pessoas precisam refletir sobre seus juízos de valor e discursos acerca de uma mulher preta.

Fiquei pensando em provar o contrário com ações e êxitos a medida que o tempo fosse passando e eu fosse me firmando aqui, principalmente enquanto profissional. Mas pra mim é o cúmulo ter que ficar verbalizando meu currículo para me defender e me validar! É um absurdo eu ter que encher minha boca para falar tudo o que já fiz para não ser reduzida. E obter um mínimo de respeito.

É muito simples desrespeitar, desvalidar e desmerecer uma mulher negra independente. É muito fácil limitar os nossos planos e o que já traçamos. E a gente fica tentando pensar em alternativas para se proteger e não se afetar com tantas violências nos discursos que ouvimos. A gente fica o tempo quase todo dizendo e lembrando pra nós mesmas sobre a nossa capacidade… isso é um absurdo.

Eu posso ser sim uma jornalista conceituada e premiada. Posso ser uma correspondente internacional competente. Posso ser uma grande gestora da mídia que sou dona e das pessoas que compõem este site. Posso ser uma acadêmica e pesquisadora de respaldo e respeito. Posso ser uma escritora reconhecida. Posso ser uma dançarina profissional de salsa ou de alguma outra dança, se eu quiser. Posso ser e realizar muitas coisas. Posso ser além do que me limitam. Posso ir além e ser tudo aquilo que quero ser. E com maestria, dedicação e excelência. Por que eu não poderia? Por que eu sou negra, nordestina, brasileira, imigrante ou o quê? Pois eu falei pra mim mesma que posso e poderei! Um dia, muita gente vai calar a boca e ver de pertinho.

*Correspondente internacional do Negrê para países da África

Foto de capa: Pasha Gray/Pexels.

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