Alguns caminhos têm me levado a pensar sobre memórias e me fazem perceber a escassez e dificuldade em se cultivar boas lembranças diante da realidade adversa que é vivenciada, em sua maioria, por pessoas pretas. Indo no caminho oposto à ideia de que as informações só são efetivas quando são lineares, escritas ou registradas, me recordo das narrativas de minha mãe; sobre os meus avós, sobre a sua infância, sobre os seus estudos e sobre a vida que lhe era comum antes dos filhos nascerem.
As falas dela são mais vivas na minha memória, pois os registros são escassos. Mesmo o mais popular, o registro fotográfico, é parco e essa é a realidade de muitas famílias pretas, seja porque câmeras fotográficas não eram acessíveis em épocas mais antigas ou pela fragilidade na autoestima ao se registrar. Em todo caso, me chama atenção que, ao fazer o exercício de recordar essas histórias, as primeiras que me surgem são as histórias de dificuldade que minha mãe me contava.
“Eu caibo em tantas outras palavras
porque é que você só quer me chamar
de resistência?”
Ryane Leão
Ela, mulher preta retinta, filha de pais também retintos, com três irmãos, criou a mim e meu irmão sozinha. Me contava sobre as dificuldades financeiras, sobre a falta e/ou limitação de comida, do esforço que meus avós faziam para que os filhos crescessem e tivessem acessos diferentes… Esse tipo de narrativa não é novidade, é a mais comum sobre famílias pretas, mas as nossas famílias não se resumem a isso. É preciso estarmos atentos aos perigos de uma história única, como Chimamanda Adichie já nos alertava, pois elas são estratégias de poder usadas para construir o imaginário de lugares e povos.
Na tentativa de romper com essa história única, eu me dei conta de que as falas de minha mãe não falavam somente sobre dificuldade. A comida limitada dizia também sobre a criatividade da minha avó no preparo dos alimentos e o esforço dos meus avós culminou em uma trajetória exitosa da minha mãe na sua vida estudantil, o que significou ser a primeira pessoa concursada da família. Minha mãe falava sobre a vida possível; e me concentrar somente nos pontos negativos dessa vivência seria superficializar a nossa existência, ignorando as muitas outras experiências que nos formaram.
É preciso que haja um “equilíbrio de histórias”, como o escritor nigeriano Chinua Achebe denomina, para que se rompa com esse imaginário que nos inventa sempre como sinônimo de pobreza, luta ou sofrimento. Isso esconde a possibilidade de historiografar por dentro, descobrir talentos ou aptidões em comum com seus parentes, ouvir pra aquecer o coração. Hoje, tenho feito o exercício de fotografar os momentos em família, ficar atenta aos discursos, deixar que se construa uma narrativa da nossa história para além da dor: arquitetar boas memórias do nosso passado pode nos salvar no futuro.
Escrevo esse texto no dia das mães para não esquecer das histórias de minha mãe; para fixar na memória os sorrisos que demos juntas, para relembrar que a fúria causada pelas violências que vivemos diariamente me move para vencer pelos que vieram antes. Escrevo esse texto para lembrar de onde vim, para não me esquecer.
Referências
ACHEBE, Chinua. Africa: balancing stories. Fidelio, v.9, n.2-3, Summer Fall 2000b.
ADICHIE, Chimamanda G. The danger of a single story. TED X Global, julho de 2009. Disponível no link. Último acesso em: 08 de maio de 2022.
Foto de capa: Ron Lach/Pexels.
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Mulher-preta-cearense, filha de Maria do Carmo. Assistente Social e mestra em Sociologia, ambos pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). É pesquisadora e especialista em Legislação Social, Políticas Públicas e Trabalho Social (Pótere Social). Encantada pela escrita e movida a expressar mundos através das palavras. Curiosa e pesquisadora, principalmente, nos seguintes temas: juventudes, raça, arte, violência, sistema socioeducativo e questão urbana. Cursa o Doutorado em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC).