Artigos Escrita Negra

Oxum primeiro lava seus ouros para depois cuidar dos seus filhos

Atravessada, constantemente, por um itã tecido com fios de ouro do mundo bantu1, que diz: Oxum primeiro lava seus ouros para depois cuidar dos seus filhos”, escrevo. Continuo. Mulheridades negras, minhas irmãs de cor, quantas vezes vocês já se sustentaram no que esse itã nos diz para que pudessem continuar? 

De origem iorubá, “itan” é uma história, conto ou relato que integra a cultura e a mitologia do Candomblé e de outras religiões de matriz africana. Uma maneira de transmitir conhecimentos, valores e ensinamentos sobre a vida, o mundo e as divindades; essa partilha de saberes ancestrais são práticas sagradas que acontecem por meio da oralidade. 

Sob o prisma da ética do cuidado, têm sido anulada pela sociedade toda nossa resistência e agenciamento histórico; e isso se sustenta, a todo tempo, com os estereótipos a nós, depositados, desde o período da Plantação, além da resignação e passividade diante das situações de violência e opressão, como nos lembra a autora e ativista, Lélia González (1935-1994). 

Estrutura histórica e de subjugação racial, as Plantações faziam parte de um sistema de exploração colonial utilizado entre os séculos XV e XIX. O nordeste brasileiro, por exemplo, era um dos lugares onde operava esse sistema escravocrata. Também referência ao conceito de Grada Kilomba (2019), a psicanalista, artista e escritora descreve o racismo cotidiano não, simplesmente, como a reencenação de um passado colonial, mas também como uma realidade traumática, que tem sido negligenciada no momento-presente. Por trauma, Kilomba usa a metáfora de uma “ferida aberta” que sangra muito.  

O encaixotamento, a patologização e a espera do primeiro erro sem retorno e perdão, são sintomas de uma indiferença com as dores que atravessam o nosso caminho. Mulheridades negras2 atravessadas com as questões de gênero e de sexualidade, com as nossas multi-identidades, estamos muito distantes do que chamam de “sororidade”. É preciso existir uma intenção dialógica entre multi-identidades. 

Dororidade é outra coisa. Enquanto a sororidade se sustenta no conceito estático construído pelo feminismo teórico branco e europeu, a “dororidade”, contém as sombras, o vazio, a ausência, a fala silenciada, a dor causada pelo racismo. E essa dor é preta, conforme nos lembra a intelectual negra Vilma Piedade

Que possamos na medida do possível lembrar disso e que esse itã possa chegar como manutenção de vida em nossos corpos e corpas. A teórica estadunidense Audre Lorde (1934-1992) nos pede para rogar a cada uma de nós que aqui mergulhe naquele lugar profundo de conhecimento que há dentro de si e chegue até o terror e a aversão; a qualquer diferença que ali habitam, para que possamos ver que rosto tem. Cuidemos dos nossos ouros! 

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Notas de rodapé

1. “Bantu” refere-se a um grupo vasto de línguas e povos da África subsaariana, com uma rica história e cultura. O termo “bantu” significa “pessoas” em várias dessas línguas. A palavra é derivada de uma reconstrução da proto-língua banta, que deu origem a mais de 400 línguas e dialetos atualmente.

2. Foi através do embasamento teórico-político-crítico do feminismo negro, nutrido de memória, luta e (re)existência, que a percepção sobre “mulher” se ampliou – o que antes tinha a imagem da mulher conforme o padrão social normativo, por ora, pontecializou a voz gigante e contínua de outras mulheridades como processo principalmente de autodefinição, autoafirmação e manutenção de vida: negras, indígenas, quilombolas, ciganas, PCDs, periféricas, lésbicas, pansexuais, bissexuais, intersexo, assexuais, travestis, transexuais, nordestinas, sertanejas, ribeirinhas, entre outras.

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*Este artigo é uma colaboração da psicóloga Nívia Tôrres

Sobre a autora

Nívia Tôrres, atualmente, integra a equipe da Coordenadoria de Diversidade, Acessibilidade e Cidadania Cultural da Secretaria da Cultura do Estado do Ceará, gerenciando, desde 2024, as políticas de ações afirmativas atualmente implementadas. Psicóloga (CRP nº11/20024) e psicoterapeuta por meio de uma clínica racializada, afetiva e anticolonial. É também artista e pesquisadora. Membra da Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as – ABPN. Carrega conhecimento, experiência e atuação no campo político artístico, clínico, cultural, socieducativo, das ações afirmativas e das relações étnico-raciais.

Referências bibliográficas

Gonzalez, Lélia. Lélia Gonzalez: primavera para as rosas negras. São Paulo: UCPA Editora, 2018.

KILOMBA, Grada. Memórias da Plantação: episódios de racismo cotidiano. Tradução: Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019. 

Lorde, Audre. Irmã Outsider. Tradução de Stephanie Borges. BH: Autêntica Editora, 2019.

Piedade, Vilma. Dororidade. São Paulo: NOS Editora, 2017.

Foto de capa: Daria/Pexels.

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