Artigos Escrita Negra

Um homem negro no mundo das palavras

Certa vez, em uma visita à casa de meus pais, me surpreendi ao ver papai lendo um jornal. Pode ser um ato simples para algumas pessoas, outras até indagariam: o que há de tão surpreendente ao olhar um homem lendo o seu jornal matinal? Bem, preciso explicar o motivo da surpresa e celebração de tal ocasião. Meu pai estudou até a 2ª série do antigo Sistema Mobral onde aprendeu a escrever seu nome e fazer uma leitura básica, ou seja, poucas palavras que não fechavam uma frase. 

O Movimento Brasileiro de Alfabetização (Mobral), movimento educacional criado e desenvolvido no contexto da Ditadura Civil-Militar entre 1964 e 1985, tinha o objetivo de erradicar o analfabetismo no Brasil de jovens e adultos. Papai tinha 14 anos quando conseguiu terminar o 2ª série, o que seria equivalente ao 1º ano do Ensino Fundamental I atualmente, e (re)lembra esse tempo contando sobre suas dificuldades que tinha com o material escolar. Mas, sorri ao falar que, com mais de 40 anos, retornou para a sala de aula. 

Hoje, aos 66 anos, ele consegue ler o jornal, responder suas palavras cruzadas e até arisca a leitura de um livro. No entanto, sabemos que o analfabetismo ainda faz parte da vida de milhares de homens e mulheres negros/as que tiveram pouco e/ou quase nenhum acesso à alfabetização. Uma realidade cruel que perdura até os dias atuais, pois, o percentual de pessoas negras que têm acesso à Educação ainda é pequeno se comparado à população branca. 

Foto: Pixabay.

Em 2019, a taxa de analfabetismo entre os brancos caiu para 3,6%, entre os negros, ela sobe para 8,9% e passa de um quarto da população negra (pretos e pardos) com mais de 60 anos, de acordo com os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). E mesmo compreendendo que os índices de alfabetização têm melhorado com o passar dos anos, como mostram as taxas dos últimos anos; esses são dados dolorosos, são números que não mostram os nomes ou a história do Luiz, da Maria, do Antônio, da Francisca e tantos outros que não puderam acessar no tempo certo uma educação de qualidade. E não revelam como é a vida, cotidianamente, quando vai pegar o ônibus e pede ajuda ou mesmo quando precisa assegurar algum direito violado.  

Isso nos faz lembrar o grande pedagogo da libertação, Paulo Freire, que sempre dizia que a educação é um ato de amor e de libertação. Paulo Freire falava da leitura do mundo que precedia a leitura das palavras, ou como ele intitulou “palavramundo” como práticas pedagógicas e, por isso, práticas políticas para a conscientização dos seres humanos. Também chega à recordação das palavras da grandiosa escritora Carolina Maria de Jesus que escreveu sobre a realidade do negro favelado. 

Ela contava sobre os horrores da miséria e como o seu “sonho era escrever” e escreveu sobre essa realidade nua e crua. No seu diário da vida, escreveu bem e escreveu muito sobre a tarefa da leitura para o povo pobre, pois, sempre dizia que “O livro… me fascina. Eu fui criada no mundo. Sem orientação materna. Mas os livros guiou os meus pensamentos. Evitando abismos que encontramos na vida. Bendita as horas que passei lendo. Cheguei a conclusão que é o pobre quem deve ler. Porque o livro, é bussola que há de orientar o homem no porvir […]”.

Isso só nos faz entender que a estratégia do opressor ainda é a perpetuação dos altos índices de analfabetismo na comunidade negra. Esse opressor que tenta, de todas as formas, oprimir, violentar e massacrar as dezenas e centenas de crianças, jovens e adultos negros retirando o seu direito de estudar e com isso, o direito ao bem-viver. Por isso, estudar deve ser uma bandeira constante para que ocorram mudanças nos dados e, principalmente, na vida do povo negro. Uma educação acessível e de qualidade e, acima de tudo, uma educação transformadora para a conscientização dos sujeitos, pois, só assim a palavra JUS-TI-ÇA será soletrada e entendida. E para que homens, como o meu pai, possam hoje ler o seu jornal matinal ou fazer suas palavras cruzadas.  

Referências bibliográficas

FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler. 33.ed. São Paulo: Cortez (Coleção questões da nossa época; v.13), 1997.

JESUS, C. M. de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. 3. ed. Ática S.A.São Paulo, 1994.

JESUS, Carolina Maria de. Meu estranho diário. São Paulo: Xamã, 1996. P.167.

*Este artigo colaborativo foi escrito por Luizete Vicente.
Jornalista, militante do movimento negro, mestre e doutora em Comunicação pela Universidade Federal do Ceará (UFC). 

Foto de capa: Jason Goh/Pixabay.

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