É bem verdade que talvez esse seja o texto mais emocionante que eu escrevo em toda a minha vida. Anteriormente, eu pensei em citá-lo como o dia mais importante, porém não, nada se compara ao nascimento da minha filha ou aos acontecimentos ligados a minha família. Todavia, esse ato reflete o futuro da minha filha, dos meus netos e de toda a minha descendência. Então, sim, esse dia estará no meu top três.
Qualquer pessoa próxima a mim, com certeza sabe o quão sou apaixonada por manifestações. Para mim, esse ato de ir as ruas e clamar por um objetivo é um ato completamente democrático e heroico. Sim, heroico, já que pra mim, heroi é aquele que não tem medo das consequências (mesmo que essas venham ser dolorosas). Muito pelo contrário, seu único desejo é o bem maior, então alguém pode traduzir essa sede de ir as ruas melhor que isso?
Muito embora eu já tenha participado de inúmeros manifestos, o que eu posso dizer sobre o #blacklivesmatter? O que foi essa “hashtag” que levou diversas pessoas as ruas não só dos Estados Unidos, mas de inúmeros países em meio a maior pandemia do século, onde a todo custo pregavam-se a quarentena? O que foi pra mim viver de perto esse protesto? Antes de mais nada, deixe me fazer uma breve introdução.
Um pequeno relato a respeito do que causou essa revolta, será preciso, muito embora eu acredite que todos que estão lendo esse texto, saibam, infelizmente, a quem me refiro nesse artigo. Bem, George Floyd foi um segurança afro americano, que ao ser preso, suspeito de tentar comprar um lanche com uma nota falsificada de 20 dólares, foi sufocado, enquanto estava desarmado e imobilizado, durante oito minutos e 46 segundos, mesmo clamando a todo momento, pelo direito à vida. “Por favor, eu não consigo respirar”, dizia aos policiais.
A morte injusta desse homem levou milhões de pessoas as ruas de todo o mundo, muito embora no Brasil, a cada 45 minutos, morra um “George Floyd”. Doeu ouvir pessoas revoltadas, chorando a morte de mais um negro. Doeu vir policiais matando um negro e o colocando como mais um nas estatísticas, doeu ouvir mais uma filha órfã.
Nós, negros, muitas vezes, ainda crianças, somos ensinados a nos conformar. É normal negro ser assassinado, normal negro ser preso, normal negra tendo um filho de pai desconhecido, normal, normal, normal… “Só tenha cuidado para você não ser o próximo, evite usar boné a noite, não ande de cabeça baixa, deixe as mãos à mostra e não ande na mesma calçada que uma mulher, principalmente, se ela estiver de bolsa”. É isso que nossas mães nos ensinam. Afinal, a cor da nossa pele, já diz muito ao nosso respeito.
Então, quer saber? Talvez soe egoísta, eu dizer isso em meio a uma pandemia, mas tive muito orgulho de ir as ruas e gritar por um objetivo, pois talvez só assim, nossa voz seria ouvida. Meu trabalho fechou mais cedo pois todos os estabelecimentos próximos estavam com medo de serem atingidos. Muitas pessoas acharam tal ato perigoso e resultado de quem “não tem o que fazer”. Meus supervisores falaram para eu não me aproximar pois a polícia poderia me “confundir” com um “vândalo” e me deportar. Outros falavam que eles eram irresponsáveis por não se preocupar com o quarentena.
Engraçado, quando eu olhava para os meus colegas haitianos eu só conseguia enxergar brilho nos olhos deles, enquanto de longe assistiam o que para nós, seria motivo de orgulho. Sim, infelizmente, os brancos, em sua maioria, não conseguem entender o que estamos falados e porque choramos, nos machucamos, mas lutamos sem cessar. Mas por quê não fizeram manifestações pacíficas para chamar atenção e blablabla? É difícil você julgar um ato de revolta quando você nunca esteve no papel de vítima. É difícil você pedir para uma pessoa manter-se calma quando ela não aguenta mais apanhar sem poder ao menos reclamar da dor.
Difícil pensar em pandemia quando as cicatrizes do seu sofrimento perduram desde a sua existência e talvez estarão presentes durante as gerações futuras. Difícil falar para pensar nas vidas vizinhas quando ninguém nunca pensou o quanto vale a vida dos seus, nunca falou em seu sentimento ou reparou nas seus vestígios.
Basta! Precisamos lutar por um recomeço. Precisamos lutar para deixar de ver grande parte dos negros em inúmeras estatísticas negativas. Queremos ser lembrados como Martin Luther King (1929-1968), Nelson Mandela (1918-2013), Will Smith, Rhaissa, Larissa, José, Rafael. Queremos poder sonhar, poder sentir e falar. Só queremos ser vistos como pessoas normais e não como “aquele nêguim”. Aliás, só queremos poder viver sem ter que sonhar em não morrer.
Foto de capa: Pexels.
*Correspondente internacional do Negrê nos Estados Unidos.
Com o coração dividido entre Jornalismo e Turismo, sempre teve na escrita a terapia mais relaxante. Já morou em três países, visitou quatro, mas seus pés estiveram presentes em oito. Ama viajar e é altamente ligada a projetos sociais, tendo sido voluntária por quase um ano em uma creche comunitária. Recém mãe de primeira viagem, tem como objeto principal fazer a filha crescer em um mundo melhor para os negros. Atualmente, está fazendo um intercâmbio na Flórida (EUA), onde ficará por um ano e usará dessa experiência uma ótima oportunidade para mostrar que os pretos(as) podem viajar, trabalhar e usufruir do lado bom da vida.