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A bala perdida continuará perdida mesmo depois de encontrar um corpo negro

Desde as últimas eleições, o número dezessete é um número que tanto acompanha toda sorte de absurdos como desperta um amplo leque de animosidades. Foi o número escolhido para representar um projeto de país. Um projeto cuja principal característica, eu diria, é aparentar não ter projeto nenhum – é fazer crer que o objetivo é simplesmente mudar “tudo isso que tá aí”. Por esse mesmo motivo, é um projeto de destruição, já que essa mudança se manifesta no massacre de “tudo isso que tá aí”, seja lá o que isso for. Lembro de ter visto, em algum lugar, alguém comentar que o agora Presidente falava muito de “acabar com isso” e “destruir aquilo”, sem nunca falar em construir algo novo ou indicar um caminho de futuro.

Há uma certa vantagem em se apresentar dessa forma. Desde que a atuação se volte mesmo contra “tudo isso que tá aí”, as promessas de campanha estão, de fato, sendo cumpridas. Partindo do programa de campanha, do “projeto” apresentado, não dá para cobrar ou reclamar de muita coisa. Já estava tudo avisado, ainda que em um projeto que mais parecia um PowerPoint feito por um aluno de 5ª série que não tem em si a ambição de tirar um 8,0 ou nota maior. Já estava lá. O projeto era destruir tudo (e todos) em nome da liberdade irrestrita. A destruição da Amazônia, a adoção de políticas econômicas que aprofundam a desigualdade, o novo modelo de corrupção que favorece milícias e grupos de extermínio, Sérgio Camargo na direção da Fundação Palmares, etc… são meros efeitos colaterais do combate à tal “velha política”.

Portarias revogadas e o fomento à morte

O dezessete, portanto, foi escolhido para ser o número da destruição; o número de um projeto cujo objetivo é escancarar em todos os âmbitos o exercício do necropoder. No dia dezessete de abril, o ocupante do cargo de Presidente da República revogou três portarias do Exército. Essas portarias tratavam do controle, da rastreabilidade e da identificação de armas e munições vendidas no Brasil. Desde abril, as armas e munições vendidas no país não precisam mais das informações que as identificam e possibilitam o rastreio.

O MPF e parte da esquerda apontaram imediatamente os riscos que essa revogação trás, na medida em que ela beneficia a atuação das milícias. Ninguém falou, porém, sobre que tipo de vida passa a estar ainda mais ameaçada. Não se ouve sobre o choro contínuo do luto de mães de jovens negros assassinados. Ou seja, não se fala nos devidos termos sobre raça. Questões raciais constituem um escopo temático pouco abordado nos debates e na produção científica sobre segurança pública, mesmo diante de números alarmantes e assustadoramente perturbadores.

Corpos negros representam 75% dos mortos pela polícia no Brasil, segundo dados apresentados no relatório Racismo, motor da violência (2020), produzido pela Rede de Observatórios da Segurança. Homens negros como eu, entre 19 e 24 anos, convivem com uma taxa de mortalidade por homicídio de mais de 200 a cada 100.000 habitantes – número gritantemente maior que a já alta taxa de homicídios do Brasil, que é de 28 mortes anuais para cada 100.000 habitantes. Ainda assim, somente 6% dos homicídios intencionais são solucionados no país.

A necropolítica do bolsonarismo

Falar desses dados e da política abertamente genocida do atual governo brasileiro sem falar de Necropolítica é praticamente impossível nos dias de hoje. Esse conceito tão na moda (e, talvez por isso, tão frequentemente mal usado) foi desenvolvido pelo filósofo camaronês Achille Mbembe. Seria utópico tentar explicar de maneira adequada o que é a ideia de necropolítica em poucos parágrafos, mas é possível arriscar uma noção geral do termo. Ampliando a ideia foucaultiana de biopolítica, Mbembe argumenta que o controle da mortalidade e a gestão das formas de morrer estão no centro do exercício do poder, nos moldes do capitalismo. Esse controle da morte pode se dar de forma direta (na violência policial e na omissão do Estado) ou de forma indireta (com a criação de condições que inviabilizam a existência dos sujeitos, chegando até a favorecer os suicídios).

Filósofo e cientista político camaronês Achille Mbembe, responsável pela ideia de Necropolítica. Foto: Reprodução.

Enfatizar que a necropolítica ou o exercício do necropoder estão no seio da manutenção das estruturas que sustentam o capitalismo é importante e necessário. Um dos fatores que tornam possível que a política seja um trabalho de morte, é justamente a maneira pela qual o capitalismo nos faz simbolizar o real dentro de uma linguagem econômica – motivo pelo qual o Mbembe sustenta que a necropolítica se intensifica dentro de políticas econômicas neoliberais. O exercício desse poder de morte acontece a partir da instrumentalização da vida humana, transformando o homem em propriedade de valor comercial. Isso faz que determinados corpos valham mais e outros menos – e a partir disso, legitima-se as violências (inclusive as que resultam diretamente em morte) perpetradas contra aqueles que ocupam os lugares mais baixos da escala de valoração social.

Governos como o de Jair Bolsonaro se alimentam incansavelmente de uma retórica mobilizadora de ódio e violência. Note, porém, que esse ódio e essa violência não são distribuídos de maneira randômica. Os alvos do bolsonarismo são bem delimitados: além dos opositores políticos, são as minorias sociais, dentre as quais nós, pessoas negras, constituímos parcela significativa.

Foto: Paulo Whitaker/REUTERS.

Se na ponta da caneta as milícias são as maiores beneficiadas pela revogação das portarias, na ponta da bala nós somos os que estão sob maior risco. A necropolítica, diz o Mbembe, faz sentido na medida em que a morte de determinados “tipos” de sujeito aumenta o potencial de vida daqueles que não correm o risco de morrer, faz que eles se sintam mais vivos e merecedores de vida. A fome de morte do bolsonarismo está cada vez mais insaciável; e são corpos negros que alimentam esse monstro.

O bolsonarismo mata qualquer possibilidade de justiça

É revoltante pensar que, no meio de uma pandemia viral, uma grande preocupação do dito Presidente seja impedir o rastreamento de armas e munições no país sob o pretexto de facilitar a compra destes equipamentos de morte. Pandemia essa que não foi capaz de conter o crescimento do número de assassinatos, pelo contrário, estes continuaram subindo. No meio de uma pandemia, com o aumento de mortes por arma de fogo, o Presidente facilita a venda de armamentos e dificulta o controle e rastreamento dessas armas e munições. É revoltante, sim, mas nós conhecemos o Bolsonaro; não é em nada surpreendente.

Para que tenhamos ideia, foi a rastreabilidade das munições que possibilitou a solução do caso da morte da juíza Patrícia Acioli, em 2011, que havia condenado mais de 60 milicianos. Foi também a mesma rastreabilidade que tornou possível que tivéssemos algum indício sobre o assassinato de Marielle Franco, que permanece sem solução há 866 dias. A assinatura de Bolsonaro em abril encerra a possibilidade de solução dos já ridiculamente poucos casos de homicídio solucionados. Os irrisórios 6% tendem a ir a 0%.

Um corpo negro no Brasil morre de muitas formas. Morre na escrita acadêmica, quando quem pensa o Brasil não pensa o ser negro. Morre no abandono estatal, quando precisa crescer em um mundo que conspira de todas as formas possíveis para que essa vida não se realize. Morre na exclusão dos espaços de destaque, que faz esse corpo invisível. E, quando já invisível, morre literalmente, pelo puxar do gatilho de uma arma qualquer, frequentemente pelas mãos das forças policiais.

Agora, além de conviver com a morte, as mães dos jovens negros assassinados vão ter de lidar também com a certeza de que não haverá reparação. Não haverá justiça. Não há sequer possibilidade de justiça. O que haverá é um sem-número de lutos que não poderão ser resolvidos; vidas de famílias e comunidades inteiras que serão obrigadas a sufocar a dor e o sofrimento se quiserem seguir com algum senso de normalidade. Não satisfeito em nos matar, o bolsonarismo agora mata também a nossa possibilidade de buscar justiça. O bolsonarismo é um crime contra a esperança.


Hoje, na data de publicação deste texto, dia 27 de julho, também é aniversário de Marielle Franco, que completaria 41 anos. Fica aqui manifesta a minha solidariedade e o meu desejo de conforto e justiça à família e aos amigos próximos. Marielle, presente. Sempre!

Foto de capa: Paulo Guereta/Folhapress.

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