Nos últimos tempos, alguns debates sobre relações raciais têm tomado maiores proporções e visibilidade na sociedade. Velhos tensionamentos raciais têm ressurgido de forma mais intensa e outros novos têm surgido, complexificando a organização e o enfrentamento ao racismo. Junto ao fervor do acirramento racial no Brasil, teorias e análises críticas que tentam apontar caminhos possíveis ao nosso povo se popularizaram e tem sido cada vez mais acessadas.
Hoje, é possível identificar produtores e produtoras de conteúdo nas redes sociais, livros, artigos, revistas, sites e podcasts com objetivo de produzir críticas, discussão, estratégias de enfrentamento e de cuidado voltada às diversas questões relacionadas ao ser preto e preta. Termos, como feminismo negro, pan-africanismo, quilombismo, mulherismo africano, colonialidade e branquitude têm sido cada vez mais utilizado e gerado interesse nas pessoas.
É perceptível o aumento do número de grupos de estudos, cursos, movimentações independentes e coletivas interessados na construção e discussão de conhecimentos a partir de epistemologias pretas. E como somos plurais, há diversidades teóricas e políticas no que tange às experiências das comunidades negras em diversas partes do mundo. Mas apesar de compreensão da nossa pluralidade existencial enquanto povo negro, muitos de nós caímos na armadilha da verdade única e da ideia do negro ideal.
O que tem se apresentado por muitas pessoas e coletivos negros é um discurso sobre a existência da melhor tática, estratégia e teoria para a liberdade do povo preto. Parece que só existe uma forma possível de lutar e ser negro(a), pois se não cumprir o ideal de negritude estabelecida estará errado, embranquecido, colonizado ou negando sua raça. Esse é o peso que tenho percebido em alguns discursos, o da negação de outras possibilidades de posicionar politicamente e de expressar sua negritude.
Em diversos momentos, eu já li textos e ouvi falas que tinham como objetivo deslegitimar pretos e pretas que são evangélicos(as), que se reconhecem enquanto socialistas, feministas negras e que constroem a política partidária. Para alguns, parece que existe um ideal de ser negro e negra, e que as pessoas que ainda não atingiram esses ideais estão sob as amarras da colonização branca, negando a possibilidade de outras leituras, existências e construções políticas. Esse tipo de postura tem trazido manifestações de disputa, violência e de constrangimento entre os nossos, sem compreender o lugar de singularidade das experiências racializadas e interseccionais.
Lembro de um acontecimento no twitter em que uma jovem negra artista fez uma postagem pública, na qual relatava a emoção e felicidade em estar sendo pedida em namoro. Na publicação feita, havia a foto de um rapaz branco (suposto namorado) segurando rosas e um bilhete de pedido de namoro. Por conta dessa publicação, a jovem foi parar nos assuntos mais comentados do twitter no Brasil, pois muitas pessoas (e não foram pessoas brancas) foram criticá-la por estar se relacionando com um homem branco.
Muitos comentários da publicação estavam relacionados a uma “traição” ao ideal da mulher negra em ter que se relacionar obrigatoriamente com homens negros (o tal do relacionamento de conto de fadas em Wakanda). Além de comentários como “namorar com branco é fácil né?”, a dona da conta publicou também que algumas pessoas estariam desejando a morte dela por este ato. Eu confesso que, quando estava acompanhando as mensagens, fiquei pensando se esse comportamento não seria uma armadilha colonial para manter a disputa e a violência entre nós, negros e negras, mas isso é análise para outra coluna.
Ao pensar sobre o discurso da verdade única e do negro ideal, não estou dizendo que algumas leituras de mundo e epistemologias não sejam passíveis de críticas ou de discussão. Acho inclusive que o diálogo seja um caminho possível para uma construção coletiva e pluriversalista sobre nossas subjetividades e agenda política. O grande problema, é fazer da divergência um fator de exclusão e violência entre as pessoas pretas, é tentar hegemonizar uma forma de ser, de estar e de pensar que em sua essência é diversa e complexa.
Quando penso em produzir estratégias de cuidados, de enfrentamento ao racismo ou intervenções políticas, eu não quero saber se a pessoa ou o grupo é pan-africanista, de esquerda, mulherista ou feminista negra, eu quero saber se existe diálogo e possibilidade de construir junto. Muitas vezes, a construção coletiva podem não ocorrer, e tudo bem, continuarei construindo com outras pessoas e organizações, sem constranger, negar a história de luta ou violentar. Pois acredito que estamos do mesmo lado da trincheira e que o racismo não quer saber qual sua posição política ou preferência teórica, basta ser preto ou preta.
Foto de capa: Cottonbro/Pexels.
LEIA TAMBÉM: O pagodão só é cultura em época de eleição
Psicólogo e Especialista em Saúde Mental e Atenção Básica pela Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública (EBMSP). É pós-graduado na especialização em Direito Humanos, Saúde e Racismos pela Fiocruz. Homem cis preto de Salvador (BA) que gosta de compor histórias e sentimentos. Já atuou profissionalmente na política de assistência social junto à população em situação de rua, na área da saúde mental, clínica psicológica e garantia dos direitos da criança e adolescente em contexto de vulnerabilidade. Escreve e se interessa por temas relacionados à saúde mental da população negra, masculinidades negras, relações não-monogâmicas, relações raciais e política.