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O suicídio enquanto sintoma de uma sociedade adoecida pelo racismo

A Organização Mundial de Saúde (OMS) e o Ministério da Saúde encaram o suicídio como um problema de saúde pública, sendo um fenômeno social relacionado a diversas dimensões da experiência humana de ordem psicológica, social, cultural, econômica, moral, política, entre outras. No ano de 2016, a taxa de suicídio chegou a 800 mil mortes por ano ao redor do mundo, sendo a quarta causa de morte da população brasileira. Nessa perspectiva, o DATASUS aponta que a média mensal de suicídio no Brasil foi de 743 mortes entre o ano de 1996 e 2017 (FIGUEIREDO 2019). 

Em uma sociedade estruturada pelo racismo e outras opressões, o suicídio apresenta-se como um sintoma de uma sociedade adoecida. O Ministério da Saúde cita alguns fatores que participam da determinação do risco ao suicídio tal como: pertencer a população negra ou indígena, estar em condição de isolamento social, ser homem, ter idade entre 15 a 35 anos ou estar acima de 75 anos, estar solteiro, aposentado, desempregado e ser migrante.

Os motivos que levam ao suicídio são diversos, sendo importante considerar a relação entre saúde mental e opressões sociais, tais como: racismo, machismo, LGBTfobia, entre outras. Pois pensar as estruturas de opressão é compreender que existe uma política de Estado que produz violência a corpos específicos, causando sofrimento de diversas ordens.

O tema do suicídio não pode ser abordado como uma questão relacionada apenas na dimensão da experiência de um adoecimento individual, onde apenas a pessoa que comete o ato de tirar a própria vida é responsabilizada. Precisamos considerar todos os fatores envolvidos, referente a questões históricas, culturais, sociais, políticas, entre outras. 

No caso do suicídio de pessoas negras precisamos considerar a estrutura racista, que organiza a sociedade colonizada em que vivemos e que provoca adoecimento psíquico nesta população. O Ministério da Saúde (2018), a partir do estudo “Óbitos por suicídio entre adolescentes e jovens negros 2012 a 2016” demostrou que a proporção de suicídio entre jovens negros aumentou, com um índice 45% maior do que entre jovens brancos. O estudo aponta também que a estrutura racista está no centro da diferença entre os números de suicídios praticados durante este período.

Racismo, processos de saúde e suicídio

O racismo apresenta-se como um sistema de opressão social, político e ideológico que organiza a sociedade, promovendo relações sociais desiguais entre diferentes grupos étnico-raciais e beneficiando a estrutura da supremacia branca. No Brasil, o racismo é uma estrutura que alimenta o genocídio do povo negro, sendo sustentado pela ideologia do embranquecimento e mito da democracia racial. 

As formas de morte vividas pela população negra são diversas, sendo que muito antes da morte concreta chegar pela bala, doença ou suicídio, as pessoas negras acabam tendo que lidar com mortes simbólicas, ou seja, com o assassinato e negação da sua história, cultura, produção de conhecimento e ciência, entre outras formas de apagamento.

A experiência da pessoa negra em uma sociedade colonizada e racista fala de uma construção subjetiva adoecida, onde o sujeito se constrói tendo que negar e anular sua existência. Grada Kilomba (2010) em seu livro “Memórias de Plantação”,  vai afirmar que a violência do racismo cotidiano é uma experiência que faz com que a pessoa negra, a partir da experiência do colonialismo, desperte  os traumas da escravização que foram vividos por seus ancestrais, sendo que a experiência do colonialismo é uma ferida inflamada que ainda não cicatrizou, nas suas palavras: “o colonialismo é uma ferida que nunca foi tratada, uma ferida que dói sempre, por vezes infecta, e outras vezes sangra.”

O racismo através de um processo de negação e desumanização do corpo negro, faz com que as pessoas negras construam uma relação de auto ódio e auto anulação. Neuza Santos Souza (SOUZA, 1990), em sua obra “Tornar-se Negro”, afirma que a pessoa negra constrói sua noção de “eu” ou ego, tomando como referência o ideal branco, que faz com que a pessoa negra se desenvolva a partir da anulação da sua própria existência. Na introdução da sua obra é apresentado que “Ser negro é ser violentado de forma constante, contínua e cruel, sem pausa ou repouso, por uma dupla injunção: a de encarnar o corpo e os ideais de ego do sujeito branco e o recusar, negar e anular a presença do corpo negro (COSTA, 1990)”.

Diante da experiência de opressão vivida pelo negro frente ao mundo branco, Franz Fanon (2008) aponta a relação de um corpo negro em negação: “o negro não tem mais de ser negro, mas sê-lo diante do branco… Depois tivemos de enfrentar o olhar branco. Um peso inusitado nos oprimiu. O mundo verdadeiro invadia nosso pedaço. No mundo branco o homem de cor encontra dificuldade na elaboração de seu esquema corporal.” 

Diante da situação de adoecimento vivenciada pela população negra nos perguntamos: Como não adoecer em uma sociedade racista que violenta sistematicamente corpos e subjetividades negras? Como não pensar em tirar a própria vida, frente ao Banzo provocado por uma sociedade que desumaniza, nega e mata pessoas negras e suas produções científicas, filosóficas, políticas e culturais? 

Foto: Victor Santos/Pexels.

No artigo “Determinantes sociais e económicos da Saúde Mental” de Alves e Rodrigues, é possível compreender que a saúde mental está relacionada a condições de acesso a direitos sociais e processos de descriminação. No texto, os autores demonstram que questões como empregabilidade, pobreza, educação, cultura, racismo, violência de gênero e discriminação sexual são determinantes sociais importantes a serem considerado no campo da saúde mental. Neste caso, a dificuldade em acessar direitos sociais básicos e as discriminações sociais poderão ser fatores de risco para o adoecimento mental, acometendo de forma mais intensa grupos populacionais específicos, causando perturbações relacionadas a ansiedade e depressão.

Nesse contexto, a prevenção do suicídio e a promoção da saúde mental da população negra, exige que os órgãos governamentais responsáveis pela saúde assumam o compromisso de implementar políticas públicas, tanto no campo da saúde, como em outros referentes a educação, trabalho, renda, moradia, etc., visando implementar ações afirmativas e reparações históricas das desigualdades provocadas pelo racismo estrutural.

É necessário que as organizações da sociedade civil continuem construindo novas possibilidade de cuidado em saúde mental, através da produção de espaços de cultura, de saúde popular, de religiosidades e de luta pela garantia de direitos. Lutar contra as desigualdades sociais, pela preservação dos nossos saberes ancestrais, modos de vida, cultura, bem viver e defender as políticas públicas se tornam fatores de prevenção importantes ao suicídio. 

Referências

ALVES, Ana Alexandra Marinho; RODRIGUES, Nuno Filipe Reis. Determinantes sociais e económicos da Saúde Mental. Rev. Port. Sau. Pub., Lisboa, v .28, n .2, p. 127-131, dez.  2010. Disponível em: http://www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0870-90252010000200003&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em 26 de setembro de 2020.

BRASIL. Organização Mundial da Saúde. Organização Pan-Americana de Saúde. Folha Informativa – Suicídio. 2018. Disponível em: https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=5671:folha-informativa-suicidio&Itemid=839. Acesso em 26 de setembro de 2020.

COSTA. J. S. Prefácio. In: SOUZA, N. S. Narcisismo e Ideal do Ego. Tornar-se Negro ou As Vicissitudes da Identidade do Negro Brasileiro em Ascensão Social. Coleção Tendências, Editora Graal, 2ª edição. Cap. 04, p. 33-44, 1990.

FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. Bahia: Edufba, 2008. FIGUEIREDO FILHO, D. B.. O que dizem os números sobre suicídio no Brasil. Revista Questão de Ciência, 20 set. 2019.

MINISTÉRIO DA SAÚDE. Óbitos por suicídio entre adolescentes e jovens negros 2012 a 2016. Brasília-DF 2018.

SOUZA, N. S. Narcisismo e Ideal do Ego. Tornar-se Negro ou As Vicissitudes da Identidade do Negro Brasileiro em Ascensão Social. Coleção Tendências, Editora Graal, 2ª edição. Cap. 04, p. 33-44, 1990.

KILOMBA, G. Plantation memories: episodes of everyday racism. Münster: Unrast Verlag, 2019.

*O artigo tem autoria de Caena Rodrigues (BA) e do psicólogo e colunista Paulo Gonzaga (BA).
Psicóloga formada pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), Especialista em Saúde da Família com Ênfase em Saúde da População do Campo pela residência em saúde da Universidade de Pernambuco (UPE) e Integrante da Universidade da Reconstrução Ancestral Amorosa (UNIRAAM). Ao longo da sua história de vida, teve como berço de formação a cultura popular de matriz africana. Atua há mais de 10 anos com comunidades negras periféricas de centros urbanos, comunidades quilombolas, comunidades rurais negras, atingidas por barragem de mineração, entre outras. Pesquisa temas relacionados à saúde da população negra, do campo e quilombola.

Foto de capa: Lucxama Sylvain/Pexels.

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