“Cinderela é branca, não essa tição”, “princesa do lixão”. Esses foram os comentários após a atriz, educadora e criadora de conteúdo na internet, Jessica Marques, 21, publicar um vídeo em seu perfil no Instagram sobre como seriam as princesas se fossem pretas e baianas.
A publicação na internet conta com mais de 71 mil visualizações. O perfil de Jessica na rede social possui 14 mil seguidores. O ataque virtual racista sofrido pela criadora de conteúdo aconteceu em novembro, mês que marca as comemorações em torno do Dia da Consciência Negra. “Além desse comentário, sofri outros com o racismo menos escancarado que apaguei ao longo do tempo”, conta.
A violência que Jessica vivenciou ilustra uma triste realidade. Uma pesquisa aponta que 81% das mulheres negras entre 20 e 35 anos são vítimas de discurso discriminatório e de ódio nas redes sociais. O estudo foi desenvolvido pelo pesquisador brasileiro e PhD em sociologia Luiz Valério Trindade, resultado de tese de doutorado defendida na Universidade de Southampton, na Inglaterra, em 2018.
Os agressores, em sua maioria são homens, entre 20 e 25 anos, o que representa um percentual de 65%. Foram analisadas 109 páginas de Facebook e 16 mil perfis de usuários. A pesquisa também mostra a presença de 224 artigos jornalísticos, reportando dezenas de casos de racismo nas redes sociais brasileiras no período de 2012 a 2016.
Relato
O caso de racismo que abriu essa reportagem foi responsável por levar a criadora de conteúdo para um passado cheio de cicatrizes. “Em um primeiro momento me senti em 2013, adolescente negra e retinta que sofria com esses ataques racistas constantemente nas escolas e demais locais em que frequentava. Também me senti perdida, se deveria ou não denunciar o agressor e como fazer isso, para onde ligar, que e-mail mandar e ainda estou nessa busca”, relata.
De acordo com Jessica Marques, a sensação ainda embrulha o estômago, dói e causa revolta. “Não é tão simples passar por isso, mas sigo na internet pelos meus e minhas irmãs negros(as), infelizmente sei que esse tipo de comentário não será o último, mas seguirei firme e forte, exaltando a beleza negra”, defende.
Depois do ocorrido, a atriz também pensou nas inúmeras mulheres pretas que sentiram-se representadas com o vídeo. “E aproveitamento sobre o mês do novembro negro, estarei trazendo vídeos que exaltam a negritude, com poesias e performances, para mostrar que a minha cor não tem nada de ruim, ruim é o racismo e o preconceito deles”, acrescenta.
Os ataques e as tecnologias
O engenheiro de computação pela Universidade Federal de Alagoas (Ufal), membro da Associação de Negras e Negros da UFAL (ANU), e mestrando em Ciência da Computação na Universidade de São Paulo (USP), Karlson Tellicio Bezerra, destaca que a construção das tecnologias que hoje utilizamos foi desenvolvida por meio de investimento em pesquisa científica.
“Os negros não tiveram chances de participar dessa construção, por heranças da escravidão. Portanto, a construção da internet e de toda a eletrificação de processos atuais se deu basicamente por mãos brancas. Isso se reflete nas tecnologias e processos em si”, conta.
Bezerra explica que, até os anos 90, a empresa de fotografia Kodak desenvolvia câmeras fotográficas exclusivamente para a pele branca. E todo os dispositivos eletrônicos eram ajustados apenas para tons de pele clara. “A indústria da fotografia definiu ser branco como o padrão. Hoje em dia, as câmeras ainda têm dificuldades raciais, identificando errado rostos negros até dez vezes mais do que rostos brancos”, defende.
Ele afirma que os ataques às mulheres negras em espaços virtuais caracterizam-se como um reflexo de uma sociedade racista e machista na sua estrutura e na construção desses espaços.
“Os espaços virtuais também são normalmente muito brancos e masculinos, pois são homens brancos que escrevem seus algoritmos. Algoritmos são como receitas de bolo. Você dá instruções e certos ingredientes ao computador, que responde com, digamos, o bolo. Assim também é feito o gerenciamento das postagens na sua rede social. Os responsáveis pela rede social escrevem instruções e os algoritmos nos apresentam conteúdo no nosso feed”, explica.
O mestrando ainda diz que o problema se dá pelo fato de que os responsáveis pelos algoritmos em sua maioria são brancos. Fator este que reflete na falta de negros em sua construção. “Recentes experimentos de influenciadores negros postando fotos de pessoas brancas no Instagram nos indica que postagens com rostos brancos têm preferência nos algoritmos dessa rede social. No Twitter, também é verificada essa preferência em mostrar rosto brancos a negros”, pontua.
Digital influencers tem denunciado o racismo algorítmico das redes sociais, como o Instagram e Twitter. No mês passado, ocorreram vários experimentos para comprovar esse tipo de discriminação racial dentro das tecnologias.
Como identificar um ataque virtual
Para a reportagem do site Negrê, a defensora pública e titular do Núcleo de Enfrentamento à Violência contra a Mulher (Nudem), no Ceará, Anna Kelly Nantua, conta que o ataque virtual é identificado como crime quando o conteúdo das redes sociais (mensagens enviadas para a mulher, postagens ou comentários) configuram-se como crimes contra à honra, isto é: injúria, calúnia e difamação.
A defensora também ressalta que a mulher também pode ser agredida de uma maneira sutil quando o homem usa postagens e divulga conteúdos vinculados na internet para humilhá-la.
“Ela vai identificar isso realmente diante dessas mensagens, diante dessas postagens se isso tiver ferindo a honra dela, se ela se sentir humilhada, ferida na sua honra, no seu aspecto moral. Aí ela vai poder identificar aquela postagem, aquela mensagem se estiver agredindo aquela mulher e pode ser configurado um crime”, explica.
O que está previsto na lei
A defensora pública Anna Kelly Nantua afirma que a punição vai depender de qual crime for configurado diante desse ataque virtual. A depender do crime, o Código Penal Brasileiro vai estabelecer uma penalidade específica. No caso do crime de calúnia; a pena é de detenção de seis meses a dois anos, no crime de difamação; a pena é de detenção de três meses a um ano, já em caso de injúria; a pena varia de um a seis meses.
“É uma penalidade ainda baixa, relativamente baixa, diante da gravidade, diante da ofensa gerada nessa vítima. Muitas vezes, as mulheres que têm a sua imagem exposta, ridicularizada, através de postagem das redes sociais. É importante também comentar sobre a questão daquela Lei que foi conhecida como Lei Carolina Dieckmann que trata sobre a invasão de dispositivos de informática, pode ser de celular, computador, quando alguém invade o seu dispositivo eletrônico para retirar imagens, retirar informações, adulterar e exibir sem a autorização dessa pessoa. Foi um crime que foi acrescentado no código penal que a depender da situação em que esse ataque virtual aconteça, pode também ser configurado esse crime que tá previsto no artigo 154A do código penal”.
– Ana Kelly Nantua, Defensora Pública
A Lei Brasileira nº 12.737/2012 ficou conhecida como Lei Carolina Dieckmann e foi sancionada em 30 de novembro de 2012, pela então presidenta Dilma Rousseff, 72. O dispositivo jurídico promove a alteração no Código Penal Brasileiro (Decreto-Lei 2.848 de 7 de dezembro de 1940) que tipifica os delitos ou crimes informáticos.
O projeto de Lei ganhou o nome da atriz brasileira por conta de um episódio no qual Carolina Dieckmann, 42, teve arquivos copiados de seus computador pessoal divulgados na internet sem autorização. A lei entrou em vigor no dia 2 de abril de 2013.
Confira quais são os delitos previstos em Lei:
- 1) Art. 154-A – Invasão de dispositivo informático alheio, conectado ou não à rede de computadores, mediante violação indevida de mecanismo de segurança e com o fim de obter, adulterar ou destruir dados ou informações sem autorização expressa ou tácita do titular do dispositivo ou instalar vulnerabilidades para obter vantagem ilícita. Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa.
- 2) Art. 266 – Interrupção ou perturbação de serviço telegráfico, telefônico, informático, telemático ou de informação de utilidade pública – Pena – detenção, de um a três anos, e multa.
- 3) Art. 298 – Falsificação de documento particular/cartão – Pena – reclusão, de um a cinco anos e multa.
- 4) Art.154-B
Quais são os serviços prestados pelo Nudem
O núcleo de Proteção à Violência Contra a Mulher, da Defensoria Pública do Estado do Ceará (DPE-CE), presta os serviços de assistência jurídica e psicológica para as vítimas que sofrem os mais diversos tipos de violência, dentre eles, o ataque virtual.
“É muito importante para que a vítima seja acolhida, para que ela seja encaminhada para serviços de continuidade a esse acompanhamento, a esse tratamento psicológico caso seja necessário. Para que assim, ela tenha a sua auto estima revigorada, e tenha coragem e força pra dar continuidade a essas denúncias, a esses enfrentamentos que as violências trazem a ela”, ressalta Nantua.
Além do encaminhamento psicológico, o órgão também presta assistência jurídica em diversos aspectos. O que vai determinar qual será o tipo de atendimento é a especificidade da violência sofrida. O que pode ser orientações em relação às medidas protetivas, o pedido da medida protetiva, se for o caso, e o ingresso com ações judiciais de acordo com a necessidade da vítima.
“Nesse caso específico de ataque virtual, é mais comum a gente ingressar com ações criminais, aquelas ações de crimes conta a honra: calúnia, difamação e injúria. A gente ingressa com uma ação de queixa crime contra o agressor. Também podemos fazer o encaminhamento para as delegacias”, explica.
A quarenta e a subnotificação dos casos de ataque virtual
A defensora do Nudem alerta para a subnotificação dos casos justamente porque muitas mulheres têm vergonha de denunciar com medo da exposição do caso.
“O que eu posso te dizer é que a gente sabe que é muito comum esse tipo de crime, esse tipo de exposição, de ataque virtual contra as mulheres. Muitas delas ainda têm vergonha, tentam esconder, evitam denunciar porque ir procurar ajuda pode acabar expondo ainda mais a situação”, diz.
A defensora afirma que o Nudem faz campanhas através dos meios de comunicação para que as mulheres possam romper os ciclos de violência.
“Essa forma de atacar virtualmente é apenas uma das formas que estamos buscando sempre orientar as mulheres para que elas procurem ajuda. Mesmo assim, não é confortável para elas pedir ajuda, e às vezes acabam demorando mesmo. É comum elas virem entrar com uma ação de divórcio ou um pedido de pensão alimentícia. Nesse momento, acabam revelando que passaram por algum tipo de constrangimento através de ataque virtual”, acrescenta.
O que fazer se for vítima desse tipo de violência
De acordo com a defensora pública Nantua, o melhor procedimentos nestes casos consiste em fazer uma denúncia. No caso das mulheres residentes no Estado do Ceará, a orientação é procurar o Nudem, que funciona dentro da casa da mulher brasileira, localizada no bairro Couto Fernandes, em Fortaleza CE).
“Elas podem procurar diretamente a Defensoria ou outro órgão que componha a rede de apoio. Esse órgão irá encaminhar esse mulher para a Defensoria. O fato é que ela chegando na Defensoria será prestado todo amparo que ela precisa para dar continuidade a esse rompimento do ciclo de violência, seja ele qual for, como disse o ataque virtual é apenas uma dessas formas”, explica.
No momento – com a maior crise sanitária enfrentada pelo mundo, a pandemia do Covid-19 – os atendimentos estão sendo realizados remotamente ou de maneira presencial, mas apenas em casos pontuais e mediante agendamento.
“Se for através de ataque virtual, nós vamos orientar, encaminhar essa mulher para uma delegacia, solicitar a abertura de inquérito policial, para que ao final ela possa ingressar com uma ação judicial criminal contra esse agressor. Na maioria das vezes, os crimes são crimes contra a honra e aí, a mulher vítima é que precisa ingressar com uma ação judicial através de uma queixa crime, através da defensoria”, orienta.
Busque ajuda
As mulheres precisam acessar o site da Defensoria Pública e contatar o órgão público por meio de ligação ou e-mail para que todas as medidas sejam tomadas.
Em Fortaleza (CE), as vítimas podem entrar em contato por meio dos números (85) 98971-8060 ou (85) 98579-9178 para buscar acolhimento.
Já na região do Cariri (CE), a Defensoria Pública disponibiliza os números (88) 99975-9586 e (88) 98842-0757.
*Com colaboração de Larissa Carvalho.
Foto de capa: Anna Shvets/Pexels.
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É Jornalista e escritor. Morador da periferia. Autor de “Os deuses estão embriagados de uísque falsificado” (Sirva-se edições alternativas – Oxenti Records, 2019). Vencedor dos prêmios: IV Concurso de Poesias Jorge de Lima, Secult – AL – 2018, Arte como Respiro, Itaú Cultural – 2020. Editor do site: O que os Olhos Não Veem. Estudante de Letras – Português, da Universidade Federal de Alagoas (Ufal). Acredita no jornalismo independente, pautado pela diversidade e pelos direitos humanos.