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Afropunk: Looks que celebram a cultura negra ou limitam o acesso?

Uma questão que sempre chamou minha atenção nas duas edições do Afropunk (2022 e 2023) em que estive presente em Salvador (BA), foram os looks. Lembro de pessoas estarem encomendando roupas, criando suas próprias peças, trocando referência da cultura preta para criação estética do visual e etc. Resgatar e reverenciar a cultura preta através das indumentárias é celebrar a ancestralidade e se reconectar aos diversos espaço-tempo da nossa história e eu reconheço a importância disso. Principalmente, claro, em relação ao aquecimento do mercado da moda entre afroempreeendedores.

Mas algo que me preocupou acompanhando esse processo, foram os relatos de pessoas se sentindo inseguras e que até desistiram de ir ao Festival pois não tinham conseguido comprar, confeccionar ou arranjar o look para o Afropunk. Ao ouvir esses relatos, percebi que os looks que não estariam em conformidade para o Festival seriam aqueles mais simples, que não tinha uma estética africana ou não tão bem elaborados assim. 

Foi pensando nessas inquietações que na edição de 2023 do Afropunk, resolvi entrevistar algumas pessoas que estavam curtindo o Festival para ouvir a opinião deles sobre esse e outros temas. Ao total, foram realizadas 20 entrevistas, 10 no primeiro dia do festival em 18 de novembro de 2023, e mais 10, no dia 19 de novembro de 2023.

As perguntas que se relacionam com o tema desta coluna foram as primeiras a serem feitas, as perguntas basicamente eram: “Como foi escolher a sua roupa hoje? E o que que ela representa pra você?” e logo depois: “Na sua rede de amigos e pessoas próximas, alguém já relatou insegurança, desconforto ou até deixaram de vir ao festival por conta de não ter a ‘roupa para o Afropunk’?”.

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Sobre a escolha da roupa para o Afropunk e o que ela representa

Sobre as duas primeiras perguntas da entrevista, as pessoas que estavam no festival responderam, em geral, que as escolhas partiram de um referencial da cultura negra; seja ela religiosa, africana, das ruas, dos blocos afros, das favelas, das referências pessoais. Além do fato de quererem se sentir bem e confortável para curtir melhor o festival. Em entrevista, o produtor cultural, comunicador e militante DJ Branco, 43, comenta: “Meu look é o look da rua, o povo preto sempre teve seu estilo, sua forma de usar a roupa”.

Fotos: Paulo Gonzaga.

Já o arquiteto Carlos Pimenta, 29, aponta em entrevista que: “Qualquer tipo de evento eu não deixo de ser preto…. Uso minhas najas ou camisões que o povo chama de camisu, que são tecidos, geralmente com estampas africanas e tudo para eventos, e aí eu sou isso… para mim, evento é isso, que a gente não deixa de ser preto, a gente sempre tem que mostrar quem a gente é, nossas raízes e nossa ancestralidade”

Sobre a ideia de se sentir confortável no festival e expressar a personalidade através da roupa, Aimeê Oliveira, 27, educadora física de Recife (PE), afirma que pensou em um look confortável, que permita se movimentar tranquilamente e curtir as rodas do Baiana System sem a preocupação da roupa rasgar. A amiga de Aimeê Oliveira e também recifense, Lara, 28, tripulante de navio, comenta também que prezou pelo conforto e que, no Afropunk, as pessoas têm a liberdade de serem plurais na forma de expressar a sua estética. Comenta também que está com uma roupa da marca independente de Recife chamada Máfia Feminina, que é desenvolvida por mulheres pretas e periféricas.

Fotos: Paulo Gonzaga.

Quando penso na pluralidade e diversidade das roupas e expressões estéticas, não deixo de pensar sobre corpos diversos. Eu enquanto homem negro gordo, sempre tive dificuldade de expressar minha personalidade através das minhas roupas e acessórios, durante muito tempo eu usei o que tinha nas poucas lojas de roupa com tamanhos grandes.

Fotos: Paulo Gonzaga.

Me recordo de ter várias peças repetidas, simplesmente pelo fato de caber em mim, pois poderia não achar mais a peça do meu tamanho. Penso que, para corpos divergentes, o lugar da vestimenta chega de uma outra forma diferente quando pensamos em poder se expressar através da roupa. Em entrevista com o comunicador Rick Trindade, 32, é possível identificar de forma nítida esses atravessamentos: “Como uma pessoa grande e gorda também, eu parto do princípio de que, primeiro eu escolho aquilo que cabe em mim, para depois escolher aquilo que eu gosto, então também tem essa questão de quais possibilidades a gente tem acesso”.

Foto: Paulo Gonzaga.

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E quem não tem a “roupa para o Afropunk”?

Durante as entrevistas, percebi que esse era um tema que, de alguma forma, já circulava entre as pessoas que foram entrevistadas e seus círculos de amizade. Muitas pessoas entrevistadas apontaram que conheciam pessoas que se sentiram inseguras e desconfortáveis de ir ao Afropunk devido à roupa, inclusive algumas pessoas falaram da sua insegurança e questionamentos sobre a roupa, a exemplo do fotógrafo Afrodiaspórico, 25, que relata que, no primeiro momento, não se sentiu encaixado e inserido no festival quando o observou nas redes sociais.

Mas, depois analisando melhor, percebeu que deveria assumir a identidade, seja ela qual for: “Se a gente é preto e vem de favela, e não tem condição de comprar roupa com temática africana, ou não tem nenhuma no guarda roupa no momento, é da gente entender que o nosso look estilo favela… Também faz parte do se sentir bonito”.

Foi relatado também, em entrevista, sobre o lugar de quem é do interior do estado se ver neste lugar de estar “BEM VESTIDO” para o Festival, já que o estilo de roupa urbano acaba ditando o lugar do que é bonito, atual e adequado. Sobre essa questão, Rick Trindade, 32, aponta que em seu X (antigo Twitter), a questão da roupa foi discutida dentro da interseccionaidade e da regionalidade. Ele acredita que “Como uma pessoa do interior, que não tem tanto acesso a festivais assim grandes, a gente sim fica com receio de vir simples e achar que não está se enquadrando no ambiente”. Rick, como outros entrevistados, compreende essa pressão estética que é produzida dentro do festival (Não necessariamente pelo festival, mas das pessoas que o frequentam), mas destaca a importância de romper essa lógica, compreendendo que o simples também é estiloso.

Considero que apelo referente aos penteados e estética para o Afropunk, não é algo do festival em si, mas é produzido por uma estrutura muito maior que alimenta certos discursos pois os produtos precisam vender e serem vendidos. Então, acredito que deixar o discurso da superprodução ser reproduzido também sirva para fazer valer o tamanho do investimento para participar do festival.

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Sobre acessos e o que pensam

A psicóloga Wafina Kuti (idade não citada), considera importante demarcar: “Que mesmo esse espaço não é acessível a toda a população negra que é secularmente empobrecida, é uma festa com um acesso dispendioso para muitas pessoas, e isso né? Vai além da roupa”. O dreadmaker e barbeiro Oridan, 27,  reconhece a dificuldade de muitos se enxergarem no festival pela grande imagem que se criou dos looks, mas aponta que: “O Afropunk vai muito mais além da estética, mas assim, é uma manifestação política-social-cultural, é um acontecimento revelador, é uma manifestação da nossa ancestralidade, da nossa estética, das  nossas vivências”.

É importante salientar que as pessoas que fazem o festival estão atentas para toda essa movimentação relacionada à questão dos looks e de como isso tem atravessado as pessoas negras. Pois, desde o ano passado, tenho visto campanhas nas redes sociais que promovem a ideia de que o look não precisa ter esse peso todo, de que as pessoas não precisam se sentir desconfortáveis por não ter “aquele look” e que “O look certo é o que te deixa confortável”!. Isso é importante que aconteça para que o festival, de fato, explore todo o seu potencial e não se perca na reprodução ou fomento desse lugar estético. 

Finalizo esse texto com a fala do professor de física Victor Manssir (idade não citada), que disse em entrevista: “Ao invés de nós buscarmos assim, de maneira tão obsessiva pela roupa, é bom darmos mais expressão às nossas saudações, a como enxergamos uns aos outros, como recebemos, como conversamos, como recebemos outras pessoas de outras etnias, isso que é muito mais importante do que uma questão de moda, porque pra mim, mais uma vez, como você mencionou, essa moda caduca, e se o Afropunk seguir nessa linha, ele vai atrofiar, não vai demorar muito para atrofiar, vai chegar mais capital, o capital vai cristalizar a coisa, então vai limitar mais acessos, vai estratificar relações (mais relações) enfim, vai esse processo morrer”.

Foto de capa: Divulgação.

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