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Sobre o show Amiúde: entre o Afrocândido e o Afropunk

Há uns meses eu tive uma noite inesquecível. Consegui estar no show de um artista que muitos de vocês não conhecem, mas, para mim, é um dos maiores artistas do Brasil, o Cândido. E aqui não estou só pensando em uma perspectiva do gostar e se identificar com as músicas cantadas ou com o artista. Estou falando de pensar no repertório, pensar nas transições das músicas, na estética, na letra, na voz, na harmonia musical e em tudo aquilo que faz um show ser inesquecível.

Tem artista que eu gosto, mas que não entrega um bom show. Isso é muito relativo. Um desses artistas é o Baco Exu do Blues, que, apesar do talento, não entrega um bom show (E olha que já fui para quatro shows). Não consegui ter a experiência que eu tive no show de Cândido como em diversos outros shows, a exemplo do Afropunk. E daí vem a discussão que eu queria trazer aqui.

O Afropunk Bahia 2022 foi uma experiência muito boa de festival! Pude ver artistas que gosto muito e curtir um ambiente em que me senti seguro enquanto homem preto. Apesar da potência, o festival apresenta um caráter estético de um lugar um tanto quanto perigoso, que é a do/a/e preto/a/e individualmente empoderado.

Foto: Divulgação/Site Afropunk.

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Festas “para” negros

Esse apelo das roupas babadeiras, que seja algo bem elaborado, uma coisa que choque, muitas vezes pode ser perigoso. Já que conheço pessoas que deixaram de ir para o Festival por conta de não ter roupa para o Afropunk. E, para além de um comportamento individualizado (Que acredito que não seja, pois ouvi outros relatos parecidos), é algo que precisamos pensar, pois se criou um padrão dentro do não-padrão.

Dizer que pessoas pretas são padrão não faz sentido, pois o corpo negro nunca foi visto a partir de um lugar de humanidade. Ainda mais de algo a ser seguido e que tenha uma grande representação na sociedade.

Mas, para mim, faz sentido pensar o padrão dentro do não-padrão; que seria aquela pessoa preta que se aproxima, na vestimenta, nos traços, no comportamento e na atitude do padrão.

E quando reflito sobre isso, a imagem que me vem é de uma pessoa do Afropunk com black grande ou tranças, gostosa/não-gorda, com roupas caras, ou aquela vestimenta super elaborada. Ou então com roupas que deixem a mostra muitas partes de um corpo preto.

E não que a gente não deva se sentir confortável com nossas roupas ou a forma que usamos não seja incrível. Inclusive eu vi um homem gordo sem camisa (apenas com uma pochete) desfilando no Afropunk e eu me emocionei muito!

Eu lembrei de mim, das questões com o meu corpo, e tenho certeza que o contexto do Afropunk possibilitou essa atitude. O que eu acho problemático é quando a estética vira o centro! Pois pode ser uma perspectiva perigosa para pessoas pretas fora da estética do que já se chamou de “Tombamento”.

Foto: Reprodução G1/Rafael Soares/Divulgação/Afropunk.

Afropunk e questões

No festival, dava para ver várias frases impactantes contra diversos tipos de opressão e que eram muito utilizadas para o público tirar fotos. O próprio nome do Afropunk, no qual existia fila para tirar foto, tinha um lugar que fazia um filme 360°, lugares para pintura de rosto “estilo Wakanda“, no lounge tinha espelho com luzes para tirar aquela foto bombástica e se maquiar também e outros detalhes.

Volto a falar que a estética negra é importante, mas o que questiono aqui é sobre o lugar que ela ocupa. Então com todo um aparato fotográfico e autocentrado, milhões de fotos surgiram no feed do Instagram; muitas pessoas tiraram muitas fotos, e é visível que as roupas e looks das festa tem um protagonismo no festival. Assim, eu percebi que existia bolhas pretas e não quilombo. Primeiro a separação de lounge e arena, algo que remete a lógica do “Quem tem mais grana acessa os melhores lugares”. E é sério que nós vamos corroborar com esse tipo de lógica?

Mas sim, rolou. E o que acontece é que para um conforto maior (Que foi o meu caso), tive que pagar mais, mas não seria mais interessante ter uma maior comodidade em todo espaço? Pois ganhei o lounge para poder sentar e descansar frente ao meus problemas médicos de dores crônicas, trombose e neuropatia. Por conta dessas enfermidades, eu não posso ficar tanto tempo em pé, pois passo a sentir muitas dores. E mesmo no lounge eu tive que caçar os puffs para conseguir um lugar para sentar e descansar as pernas.

Uma outra coisa do lounge é que tinham influencers, atores, atrizes, diretores, roteiristas, cantores e uma galera com mais de 10 mil seguidores no Instagram. Então eu não percebi que existia um atmosfera de encontro, de união, aquilombamento e cuidado, sabe? Parecia que era cada um por si, tentando tombar da sua forma, uma coisa mais egóica e particular. Até alguns amigos e amigas minhas comentaram que estava difícil paquerar porque parecia que cada um estava ali por si ou pela sua bolha.

E aí, eu me questiono: se não poderia ser feito um modelo de festa no qual potencializasse aquilo que temos de mais potência enquanto povo preto, sabe? Uma forma que unisse, que fosse mais acessível, e que a experiência fosse mais comunitária e não individual. Inclusive sobre acesso, eu tive que comer um pastel vegano por 30 reais no festival, sendo que como um de 7 reais fora do show.

Eu não sei como pensar isso e nem tenho um modelo de como seria um festival preto ideal, até porque acho que experimentar é isso; é vendo o que vai dando certo e o que não deu, até porque esse ano foi apenas a segunda edição do Festival. Tenho entendimento da potência de uma grade preta foda, em um dos maiores lugares que recebe festivais, com muita gente preta na produção e equipe em geral, mas precisamos refletir sobre.

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Sobre repensar

E foi pensando nesse show de ontem que essa reflexão veio à tona: por que não um Afrocândido? A experiência que vivi de comunhão, afeto, cuidado, pretitude e pertencimento no show Amiúde de Cândido foi imensurável. Foi algo inexplicável, algo que mexeu tão profundo, que esse texto está foi escrito a quase três horas da manhã pós show.

Senti algo parecido com o show de Emicida, do qual sou muito fã. Só que a composição baiana tem algo que nenhuma música do Sul e Sudeste terá que é justamente a afetividade territorial que perpassa nossas histórias enquanto povo preto baiano.

A cada música e a cada gesto, eu me conectava às minhas histórias que se confundem com Salvador (BA). Meus sentimentos ficaram ali à flor da pele; chorei, sorri, me indignei e dancei muito! E o porque não ter grandes artistas pretos baianos no grande palco de um Festival? Era outra pergunta que me fazia durante o show.

Fiquei pensando no porquê de não produzir um festival que pudesse potencializar tudo que o nosso povo é? Para quebrar com essa lógica individualista e colonial de pista e camarote/lounge. Um lugar em que as pessoas pudessem se conectar de verdade; olhar no olho e compartilhar vivências e saberes.

Talvez o show Amiúde de Cândido tenha sido a energia que senti falta no Afropunk. E como vocês podem perceber, eu já tenho roupa para esse festival com o show amiúde e de outras(os) grandes artistas baianos e nordestinos.

Obrigado Cândido, participações (Gabi Ferruz e Alexandra Pessoa) e banda (Heverton Deodé na percussão, Shirley Silva e Talita Felício nos Back vocal e Denner Souza no baixo) por fazer da minha noite um lugar onde eu queria morar; um local acolhedor, afetivo e de comunhão entre pessoas pretas especificamente.

Foto de capa: Maiana (axcoisas).

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