Há poucos dias, uma propaganda norueguesa em que o Papai Noel está beijando uma rapaz viralizou nas redes, e como sempre, diversas pessoas se manifestaram contra a propaganda. É importante, antes de qualquer análise ou crítica assistir a propaganda inteira que vou disponibilizar por aqui.
Veja o vídeo:
O enredo do vídeo publicitário é sobretudo sobre amor, o Papai Noel e o outro rapaz de meia idade vão criando uma relação anos após anos até chegar no polêmico beijo. Ao final da propaganda, uma mensagem importante é passada: “Em 2022, a Noruega marca os 50 anos de que é possível amar quem você quiser”.
É possível notar que que a proposta da propaganda passa pela construção de uma relação amorosa entre um homem de meia idade e o Papai Noel, justamente para mostrar que é possível amar de fato quem quiser. E, desculpa quem não gostou, mas eu achei essa propaganda genial! E nessa coluna, gostaria de refletir um pouco sobre as questões envolvidas na preocupação de algumas pessoas com a propaganda estrangeira que mostra o Papai Noel amando e beijando outro homem.
Sociedade e patriarcado
A nossa sociedade ainda é marcada por uma lógica patriarcal, caracterizada pelo poder do pai, o poder masculino. Esse poder advém de um tipo de homem, o homem branco, cristão, cis, hétero, viril, controlador e forte. Neste caso, tudo o que foge a essas características são repudiadas por grande parte da sociedade e são classificadas como ilegítimas e, em muitos casos, imorais.
A lógica patriarcal é marcada pelo exercício de poder em relação às mulheres e aos homens que não se enquadram nas características hegemônicas de “ser homem”. Dessa forma, podemos ver números espantosos de feminicídio, violência contra as mulheres, assassinatos de jovens negros, assassinatos de homens e mulheres LGBTQIA+ e discursos a favor de uma sociedade masculina e heterocisnormativa.
Preservar os discursos brancos e masculinos na sociedade é sinônimo de manter o poder exercido pelo patriarcado. E qualquer coisa que fuja a essa lógica é combatido de forma firme por aqueles e aquelas que se sentem ou fazem parte da estrutura patriarcal. Dito isso, é compreensível todo esse ódio e revolta contra a propaganda norueguesa em que o Papai Noel constrói uma relação afetiva com o homem e o beija, pois apesar do Papai Noel ser uma figura fictícia, nessa propaganda ele traz aspectos caros para o patriarcado.
Papai Noel e a homossexualidade
Apesar do Papai Noel ser uma figura fictícia, aos olhos da estrutura patriarcal todo homem precisa ser hétero. A heterossexualidade está relacionada com o que é normal e a figura do homem viril, então até mesmo para uma figura fantasiosa, é necessário garantir essa pseudonormalidade para uma figura tão querida e emblemática.
Reivindicar um Papai Noel heterossexual é defender a estrutura de poder do patriarcado, por isso tanto investimento no ódio ao repudiarem a propaganda norueguesa. A masculinidade hegemônica é como se fosse um território imaginário a ser preservado, então a partir do momento que esse território é invadido ou questionado, cada homem que se vê dentro dessa lógica de masculinidade vai se sentir atingido também. E é partir desse sentimento de masculinidade ferida que se faz o movimento de negação do outro e de outras possibilidades de ser homem; mas nesse caso em específico, da existência de uma papai Noel que beija outro homem.
Papai Noel e o imaginário infantil
O símbolo do bom velhinho tem uma relação forte com o imaginário infantil, então só a possibilidade de ele ser gay (e é só possibilidade, pois o Papai Noel pode ser bissexual, pansexual ou hétero, e naquele contexto beijou outro homem) gera um desconforto. Já que a homossexualidade (ou a não heterossexualidade) é vista pela sociedade conservadora como perversão moral e sexual.
Existe um discurso entre os conservadores de que pessoas LGBTQIA+ precisam ficar longe de crianças, pois são potenciais abusadores ou má influência por fazerem apologia a homossexualidade, bissexualidade, assexualidade, pansexualidade, transgeneridade e outros. Dessa forma, a ideia de um Papai Noel que beija outro homem é inaceitável. Como é que o bom velhinho vai interagir com as crianças, receber suas cartinhas, dar presentes, receber as crianças em shopping e tirar fotos com elas em seu colo? É muita imoralidade para uma sociedade patriarcal.
Para mim, a maior imoralidade para essa sociedade nessa propaganda é a história de amor construída na narrativa da peça publicitária. E isso eles nunca vão perdoar, um homem velho amando outro homem e demostrando esse sentimento através de um beijo.
Uma questão interessante para se pensar, é que a estrutura que repudia um Papai Noel beijando outro homem é a mesma que naturaliza a capa da playboy de 2000, na qual o bom velhinho está sorrindo atrás da Carla Peres, enquanto a dançarina segura os seios. Tiveram até comentários de que o Papai Noel da playboy seria o “raiz”, o sem mimimi e etc. O que prova que a grande questão foi o beijo entre dois homens e não a sexualização de um personagem fictício.
Papai Noel e a figura paterna
Não à toa, a principal figura natalina se chama Papai Noel, pois enquanto símbolo, o bom velhinho também representa a figura de pai e consequentemente de família. Para a família tradicional brasileira, o pai é um homem hétero; provedor, chefe da família, homem honrado e trabalhador. Características que não é possível se atribuir a um homem gay, apesar de branco. Pensar um Papai Noel gay, vai contra a ideia de família, pois a família em si é constituída fundamentalmente por um homem hétero.
Um exemplo deste posicionamento, é quando pensamos sobre a adoção de crianças por famílias constituídas por dois pais ou duas mães. Além do não reconhecimento social dessa estrutura familiar, muito se questiona sobre a incapacidade de criar uma criança saudável, pois para um desenvolvimento normal é importante a presença de um pai e uma mãe. O que só demonstra a desinformação e o preconceito desses conservadores que, infelizmente, ocupam em grande número o judiciário, o executivo e o legislativo desse país. Dessa forma, pensar sobre um homem gay e pai para uma sociedade heteronormativa é muito afronte.
Papai Noel e a velhice
Dentro da nossa cultura ocidental, as pessoas velhas são vistas de forma infantilizadas, fragilizadas e invalidadas. Por conta desse olhar infantil, e por isso detentora de uma pureza, a sexualidade na velhice é pouco discutida e compreendida. Algumas pessoas velhas que expressam sua sexualidade de forma livre e aberta são patologizadas, chamadas de velhos tarados e doentes. Sobre essa questão, lembro de quando passou na televisão um beijo entre duas personagens velhas, interpretadas pelas atrizes, Fernanda Montenegro e Nathalia Timberg, na novela Babilônia em 2015.
Na época, foi um choque e muitas pessoas se manifestaram contra o beijo e outras a favor. Para quem se posicionou contra, foram nítidas as justificativas lesbofóbicas, mas também foi possível perceber a discriminação sobre a faixa etária das personagens: “Como assim pessoas velhas se beijando?”. O beijo de pessoas velhas choca porque a velhice é lida também como pureza, na qual não se deve ter expressões sexuais. Desta forma, o Papai Noel não deve dar um beijo, pois coloca em xeque o imaginário ocidental do “bom velhinho”.
Quem tem medo?
Ao final, quem tem medo do Papai Noel que ama e beija outro homem é a estrutura patriarcal. São os mesmos que vociferaram contra revista que mostra o super-homem beijando outro homem, são as pessoas que não compreendem a diversidade de gênero e sexualidade e as diversas formas de se expressar no mundo. São aqueles que querem a sociedade do preconceito e da opressão, que são nostálgicos com a época da censura e do silenciamento, são aqueles que se posicionam contra qualquer possibilidade plural de existência e amor fora da caixa da heteronormatividade. São as pessoas que, muitas vezes, não puxam o gatilho pra matar, mas dão munição para a morte de muitas pessoas.
Diante disso, me posiciono pela pluralidade de existência e representação. Não se pode criminalizar e rebaixar vivências; o amor é para quem quiser amar e essa é a genial mensagem da propaganda norueguesa. Se, durante essa peça publicitária, eu pude experenciar diversos sentimentos de felicidade, apreensão e tristeza a partir de uma narrativa de amor entre o homem e o Papai Noel, também serei capaz de ser empático com as mais diversas formas de amor.
Notas
Obs 1:
No título, a palavra “gay” aparece entre aspas porque não há informações concretas para essa definição, pois a personagem do Papai Noel poderia ser bissexual, pansexual, heterossexual e as mais diversas orientações sexuais. Porém, a personagem foi lida como gay por grande parte dos veículos de mídia e pelas pessoas que gritaram contra a propaganda. Por isso, coloquei as aspas.
Obs 2:
Os termos ‘velho’ e ‘velhice’ são utilizados a partir de um lugar de respeito, diferente do que é compreendido normalmente enquanto forma pejorativa.
Referência
Papai Noel tem relacionamento gay em propaganda dos correios da Noruega; Veja vídeo – Canal Julio Marinho (https://youtu.be/Ik2B5Ctk36Q).
Foto de capa: Reprodução.
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Formado em Psicologia e Especialista em Saúde Mental e Atenção Básica pela Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública (EBMSP). É pós-graduado na especialização em Direito Humanos, Saúde e Racismos pela Fiocruz. Homem cis preto de Salvador (BA) que gosta de compor histórias e sentimentos. Já atuou profissionalmente na política de assistência social junto à população em situação de rua, na área da saúde mental, clínica psicológica e garantia dos direitos da criança e adolescente em contexto de vulnerabilidade. Escreve e se interessa por temas relacionados à saúde mental da população negra, masculinidades negras, relações não-monogâmicas, relações raciais e política.