Quando se fala em literatura negra no Brasil, com toda a certeza existem dois nomes que não podem deixar de ser listados. Maria Firmina dos Reis (1822-1917) e Carolina Maria de Jesus (1914-1977). Tem mais ou menos cem anos entre as duas, mas as biografias mostram que a luta a qual precisaram lutar ainda era praticamente a mesma. As pancadas sociais, o preconceito e os obstáculos foram quase que os mesmos.
Mesmo assim, apesar de todo o contexto contrário, elas, duas mulheres negras, se negaram a ser levada pela correnteza e nadaram contra. Contrárias à maior parte do pensamento arcaico brasileiro que custou — e até hoje custa a mudar.
Foram pioneiras e escolheram ser independentes como mulheres negras, e com toda a certeza vale a pena serem lidas para conhecer um pouco mais de suas histórias.
Maria Firmina dos Reis
Deveria ter tido “pioneira” no nome. Maranhense, ela é a primeira mulher a publicar um romance no Brasil, a primeira na crítica ao escravismo brasileiro e a escrever um romance de teor abolicionista — gênero que só viria aparecer anos mais tarde. Foi ainda a primeira mulher a passar em um concurso público no Maranhão, que a fez professora. Criou a primeira escola mista para meninos e meninas gratuita — que infelizmente durou pouco devido ao escândalo que causou na cidade onde foi fundada. Além de tudo, era uma mulher independente que decidiu viver com o suor do próprio trabalho, sendo, é claro, mal vista pela sociedade da época.
Aliás, a época é o meio do século 19. Foi no ano de 1959 em que Firmina publicou seu romance intitulado Úrsula, fazendo algo completamente inovador e impensável. Apropriou-se da literatura para humanizar personagens negros escravizados e gritar contra toda aquele sistema escravista que ainda crescia em terreno fértil no Brasil.
Claro que tentaram silenciá-la de uma forma ou de outra. Também por isso, seu rosto verdadeiro é desconhecido. Nos registros oficiais, no lugar das gravuras da autora de Úrsula, — até hoje se tem — uma imagem inspirada no retrato de outra mulher, uma gaúcha, bem mais nova, que viveu depois. No museu histórico do Maranhão, o busto da escritora também foi embranquecido, representando-a com nariz fino e cabelos lisos.
Durante muito tempo, sua obra se perdeu e caiu no esquecimento até ser recuperada em 1962 por um historiador em um sebo e voltou à pauta. Timidamente, mas voltou.
Além de Úrsula, Maria Firmina escreveu contos, novelas, poesias, e músicas melódicas e letradas como A escrava, Cantos à beira-mar e o Hino da libertação dos escravos.
Nenhum retrato confiável de Maria Firmina dos Reis sobreviveu ao descaso dos tempos. Mas suas palavras, seus feitos e sua biografia com certeza vão ecoar pela história, mostrando, do lugar mais legítimo de fala, que estava muito à frente do seu tempo.
Carolina Maria de Jesus
Viveu um pouco mais tarde que Maria Firmina dos Reis, mas nem por isso com mais facilidade. Foi uma mulher negra moradora das favelas de São Paulo do século 20. Frequentou a escola só até o segundo ano do ensino fundamental, onde aprendeu a ler e escrever. Mas, vinda de família humilde, só encontrava alguns livros na casa de vizinhos.
Depois de ver a mãe ser presa injustamente, o que foi comprovado depois, a mineira Carolina de Jesus ficou tão marcada com a história que se mudou para São Paulo. Lá, ela conseguiu trabalho na casa de um médico. Passava as folgas na biblioteca do patrão, mas quando engravidou, teve que largar o emprego e ir embora.
Passou a catar papel para sobreviver e sustentar a família. Quando encontrava algum mais conservado, guardava para escrever. Criou no papel um amigo, ao qual contava sobre a vida, as angústias, as alegrias, as dificuldades. Todos os dias despejava ali suas dores e, assim, amenizava a dureza da vida. Falava sobre como era ser uma mulher negra, mãe solteira na favela, como era lutar contra a fome e sustentar os filhos sozinha.
Foi assim durante muito tempo. Até que um jornalista a descobriu e ficou realmente impressionado com os escritos de Carolina e sua habilidade com as letras, ajudando-a na publicação do seu primeiro livro, intitulado Quarto de Despejo – diário de uma favelada, em 1960. Foi um sucesso. Vendeu muito, ela foi reconhecida como autora e ganhou bastante dinheiro. Chegando a ser elogiada até por Clarice Lispector (1920-1977).
Seu livro foi muito importante por trazer, principalmente, a discussão da vida na favela que, simplesmente, não se falava naquele tempo. Carolina mostrou um olhar interno da vida na periferia, comparando a favela com um quarto de despejo dos governos que jogavam lá pessoas que não combinavam com a imagem da cidade. Nesse quesito, Carolina Maria de Jesus foi pioneira com seus relatos ao mudar o fluxo da narrativa, colocando a favela como pólo criador e emissor de cultura.
Mas, como negra favelada, todo seu sucesso era atribuído ao jornalista, homem branco e devidamente educado. Apesar de ter conseguido ganhar mais dinheiro do que pudesse imaginar e ter sido traduzida para outros países, Carolina não conseguiu lutar contra o preconceito da sociedade. Seus livros posteriores venderam cada vez menos, obrigando a escritora a voltar para a rua como catadora de papel. O que fez até sua morte em 1977.
Em vida, Carolina Maria de Jesus publicou Quarto de Despejo (1960), Casa de Alvenaria (1961), Pedaços de Fome (1963) e Provérbios (1963). Ainda foram publicadas mais seis obras, extraídas de seus cadernos e escritos avulsos, das quais Meu Sonho é Escrever: contos inéditos e outros escritos (2018) e Um Brasil para Brasileiros (1982).
Carolina Maria de Jesus viveu e mostrou como é viver sendo mulher negra, mãe solteira e da periferia nas favelas de São Paulo, na metade do século passado.
O que se pode aprender com ela? O que se pode aprender só com esse resumo da história dessas duas, na verdade? Com certeza a cartilha de ensinamentos é longa. Mas o exemplo é, sem dúvida, o que mais chama a atenção. De determinação, de bravura, de encontro com a identidade.
Viver em tempos em que tudo parece contra a possibilidade do sucesso e da emancipação de gente negra, mostra apenas que, mesmo hoje em dia, a luta delas ainda precisa ser lutada do jeito que elas começaram. Com coragem e confiança, mesmo que tudo ao redor diga o contrário. É preciso fazer provável o impensável.
Jornalista pela Universidade de Fortaleza (Unifor) e mestre em Comunicação pela Universidade Federal do Ceará (UFC), na linha de pesquisa de fotografia e vídeo. Redator, roteirista e editor de podcast e peças em áudio. Profissional do marketing, trabalha com comunicação digital, comunicação política e marketing eleitoral.