Escrita Negra

A Caixinha de Sonhos

Em um ponto onde a luz e a sombra dançam no silêncio da calçada, uma menina espera um ônibus (seja lá de onde venha) para ser refúgio contra a inumana cidade. Espera um motorista qualquer que lhe dê subida.

No colo, uma pequena caixa de sapatos, cheia de buracos e figuras mal desenhadas, e uma tentativa de escrever algo como 0,50 Semtavos. Apesar de feia e suja, essa caixa (sua melhor amiga) era sua razão de subsistir. E ambas, caixa e menina, permanecem sentadas e esperançosas, em sina de inércia, imobilexatas há algum tempo. Estariam lá por fome, ou talvez desistissem da vida?! Difícil saber… talvez perdera a esperança de perder a esperança…

Então a chuva que cai pra banhar a rua na noite calada.

O Carrote-come-gente vem chegando lento, digerindo inteiridades de carne e ideias na correria da cidade em mais um dia a menos. Como um cão fareja um osso trazido pelo dono amável, a pequena fica em prontidão, e vai correndo em direção a porta da frente.

O motorista (um carrancudo, pior tipo pra pedir carona) olhou pra menina com cara de quem vê um vira-lata rabugento, magro, feio e pidão. Mas naquele momento, ele era o bicho do pior tipo: o homem, no exercício dos que são mal‟amados. Só notou a pequena na porta quando quis, e ignorante, senhor de si naquele monstro de aço, pergunta o que ela quer. A menina, um vira-latas rato molhado, pede: “Oh moço! To vendeno doce. Abre lá atrás?”. Com malicia de alma sebosa, ele abre a porta e berra: “Vá lá!”. Quase sem acreditar no que ouviu, a criança corria já contente rumo ao refúgio, ainda que por pouco tempo.

Não devia ter confiado…

Antes que ela pense em subir, o sem amor acelera. Se fosse a primeira vez, seria bom demais, mas era sempre a mesma cilada de maneiras diferentes, e ela sempre tentava acreditar, por mais que fosse mentira. E o sem amor parte, levando de passageiro o sorriso da menina, seu pouco de esperança, sua razão dela estar no mundo. Então ela chora, cansa, limpa o rosto e se deita num banco – “da próxima vez eu vou” (a ilusão a mantinha viva).

Como pode essa pequena levantar a cabeça e fazer de conta que tinha vida boa?

De dia, catava latinha e vendia no peso. Comia no banzo do fim de feira, nos preços. Sempre tinha concorrência pra comer fosse o que fosse. Era cão, gato, rato, cheira-cola, cracudo e tapurú. Nessa brincadeira de viver, a fome a fazia bicho, engolindo o que tivesse antes que alguém a visse, senão era problema, briga ou até morte.

Pra poder não desviver fazia qualquer negócio, menos trocar seu corpo – fugindo dos nêgo, do ego, do ócio, do cio. Não topava ser cheira-cola, nem bicho come-pedra e outros tipos, errados como o lixo das ruas que a prefeitura não limpa. Todo dia à tardezinha vende bala no sinal ou no ponto de ônibus, pra ser desprezada à noite na hora de esperar carona…

Na sua desvida, a rotina era assim: catava latinha, vendia no peso, comia nos preços, vendia balinhas, fugia do errado, chorava o desprezo, mantinha a esperança. E essa esperança era toda uma caixinha que a fazia desmorrer mais tempo…

Na noite nova, a cena é velha: uma menina a espera um ônibus qualquer para lhe salvar das malícias inumanas da cidade. Ela ainda espera que um motorista a aceite. Ao seu lado a velha amiga remendada e riscada “0,50 Semtavos”. Ela ainda está com fome, ainda está ansiosa e nessa noite ainda chove… mas… espere… o que é isso agora?!

Algo está diferente….

Na velha cena, há algo novo. Um rapaz está sentado num dos bancos. Ele está de blusão de frio com capuz e um boné, fumando um cigarro. Suas mãos tremem e ele morde os lábios. A pequena observa, curiosa. E quanto mais ela observa, mais ele está reservado.

“Será que tá esperando alguém?” – ela pensou.

Distraída com o sujeito, ela quase que não nota o ônibus chegando. O motorista é o mesmo sujeito mal‟amado de uma noite qualquer. Novamente, a pequena vai à porta com esperança de ser diferente, como se alguma vez tivesse sido. Então, como se alguém voltasse a fita de um filme, se repete a mesma conversa: “Você de novo, muleca?!”; “Oi moço! To vendenu bala…”; “Ome, deixe de abuso!”; “Ah, moço, deixa eu subir, vai?! Só dessa vez?!”. A menina apela tanto, que o motorista abre a porta de trás.

“Eu sabia. Hoje vai ser diferente!” – Ela pensou sorridente.

O rapaz que não esperava ninguém subiu pela frente, indiferente à situação. Ela, quase em frente à porta, vê sua esperança ir embora, dessa vez acelerando com tudo. A menina cai no meio fio, no meio frio da rua molhada. A caixinha ensopada, nem dá mais pra ver os “0,50 Semtavos”… E o desprezo segue viagem sem olhar pra trás. Ficou a menina e a caixa ensopadas, foi o motorista, o moço estranho e a esperança.

Já não levanta mais a cabeça, nem recolheu a caixinha do chão. Não finge mais que a vida é boa, não sente dor, agonia ou tristeza. Apenas sono. E a pequena deita no banco dessa parada de ônibus. A chuva passou, mas gotas ainda caem e molham o seu rosto.

Do banco do ônibus não saiu (melhor assim).

Só assim não viu o sujeito estranho na noite, com a arma na mão e o sangue no olho. Não viu o tiro abraçar o motorista, nem viu o ônibus sendo roubado, nem a polícia indo atrás do sujeito. Naquele meio fio, ficou mais segura, sem morrer na noite que não entrou no ônibus. Sem sabendo o que aconteceu aquela noite, a pequena conservou a inocência.

Os sonhos são feitos de água…

*O texto colaborativo é uma autoria de Kleiton Souza (RN). MC, produtor cultural, articulador no movimento hip hop potiguar, graduanda em Produção Cultural pelo Instituto Federal do Rio Grande do Norte (IFRN) e integrante do Coletivo Quinto Elemento.

Foto de capa: Sergio Souza/Pexels.

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